Schola Obscura

 

Capítulo IV

 

Na manhã seguinte, quando Harry acordou, Snape estava arrumando sua maleta.

- Vai sair?

- Vou voltar à Inglaterra.

Harry ergueu-se de imediato.

- O quê? Como assim?

- Não há mais nada que eu possa fazer aqui. Você já viu como é o sistema: eles não vão revelar mais nada se não fizermos o pacto.

- E o que eu faço, então?

- Faça o que quiser. Não tenho nada com isso.

- Ah, é assim? Vai embora diante da primeira dificuldade que surge no seu caminho?

Snape ficou branco e aproximou-se dele de punhos cerrados.

- Vai me chamar de covarde outra vez?

Harry ficou como que paralisado. Por que é que eles sempre voltavam ao mesmo ponto?

- Escute... Não vamos começar tudo de novo... Por que você é tão difícil?

- Eu, difícil? Já perdi a conta de todos os insultos que você já me dirigiu, mas não, eu é que sou difícil!

- Sei que você não vai gostar se eu mencionar o que aconteceu a noite passada, mas não tem jeito, vou ter de falar.

- E se eu não quiser ouvir, você vai me chamar de covarde.

Desta vez Harry não respondeu à provocação.

- Ontem eu abri mão do meu maior sonho porque você estava lá, e você era real. - Harry olhou bem dentro dos olhos de Snape e viu um brilho acender-se no fundo dos escuros túneis. - Fui atrás de você e quando o encontrei com uma outra versão de mim mesmo... fiquei orgulhoso, mas também com ciúmes. Ontem eu não entendi a minha própria reação, mas agora entendo o que senti. Você ama aquele Harry, aquele que está na sua imaginação, aquele que o perdoa e precisa de você de um jeito especial. Você ama a ele, e não a mim.

Os olhos de Snape pareciam incendiar sua alma.

- O que você está dizendo não faz sentido.

- Como não? Você ama apenas o Harry da sua imaginação porque é mais fácil. Porque não precisa lutar por ele.

Snape abriu um sorriso de escárnio.

- Ah, sim. Quer que eu mate dragões e duele por você, é isso?

- Não. Sabe que não é isso. Você me ama apenas porque acha que não pode me ter.

Snape segurou-lhe ambos os braços com força.

- Por que está me dizendo isso? O que você quer, afinal?

- Antes de mais nada, quero que fique.

- Para quê?

- Nós já enfrentamos nosso maior desejo, e não fraquejamos diante dele. Agora tudo o que eu quero é saber o que é a Cueva - este é, agora, o meu maior desejo. Não creio que eles possam me tentar com outra ilusão. Acho que, juntos, poderemos voltar à Cueva e... enganá-los. Se estivermos unidos, será mais fácil. Eu consegui resistir por sua causa e, bem, consegui tirar você de lá também, não?

- Unidos... Percebe o absurdo que está dizendo? Nós não conseguimos nos entender sobre nada!

- Será mesmo? Quando não estamos brigando, nós nos damos bem.

- Isso é um truísmo, Potter.

- Você entendeu o que eu quis dizer. Eu gosto de estar com você.

- Está querendo dizer que... que eu tenho uma chance com você?

- Eu... não sei.

- Nesse caso, prefiro ir embora. O que você está dizendo é muito vago para mim. Não gosto de coisas vagas.

- Eu sei que é vago, mas eu sinto que pode dar certo. Eu sou um péssimo Legilimente, mas se afinarmos nossas mentes, se conseguirmos treinar comunicação mental...

- Quem lhe disse que você é um péssimo Legilimente?

- Ora, você! Eu nunca mais treinei Oclumência depois daquelas nossas aulas fracassadas, porque há muito poucos Legilimentes no Mundo Mágico. Nem mesmo entre os Aurors existe alguém que domine Legilimência.

- Eu nunca disse que você não era um bom Legilimente. O que eu disse é que você não se esforçava para fechar sua mente e aprender Oclumência. Mas você me pareceu ter talento para a Legilimência. Mais de uma vez você conseguir romper minhas defesas, coisa que o Lord... que Voldemort jamais conseguiu.

Harry ficou feliz e orgulhoso, e sentiu que havia esperanças.

- Está vendo? Mais uma razão para fazermos o que estou propondo. Você mesmo reconhece que eu consigo romper suas defesas. Isso deve ser porque há uma espécie de sintonia mental entre nós.

Snape ficou pensativo.

- De fato. Desde aqueles dias, no seu quinto ano, eu tenho essa suspeita.

- De que haja uma sintonia mental entre nós dois?

- Exato. Uma afinidade.

- Fique mais dois dias. Vamos treinar comunicação mental. Você tinha isso com Dumbledore, não?

- Oh, sim, mas Albus me treinou durante meses! Não acha que conseguiremos isso em dois dias, acha?

- Não, mas se conseguirmos alguma coisa, creio que será o suficiente para...

- Para enganar o diabo?

- Bem, o Marquês conseguiu, não foi? Não acha que somos melhores do que o Marquês?

Snape abriu um meio sorriso e balançou a cabeça.

- Gryffindors...

~*~*~

Depois de longas discussões, concordaram em ir treinar à beira do rio. Ao passarem pela portaria da pousada, os olhos de Harry encontraram o quadro do fidalgo de cabelos negros.

- Snape. Olhe para esse quadro. Não é o...

- ... Marquês de Villena. Com certeza.

Os dois se voltaram para o sr. Clavero, que lhes dirigiu seu sorriso amável de sempre.

Harry deu de ombros, e Snape pareceu irritado.

- Vamos. Esse sr. Clavero tem algo peculiar que me intriga.

Snape não falou mais nada a respeito, e Harry também não sabia o que pensar. Sentaram-se em um banco de pedra à beira do rio. Snape olhou ao redor para ter certeza de que estavam a sós. Então tirou a varinha de dentro da jaqueta, discretamente.

- Se lançarmos Legilimens conjuntamente, poderemos passear pela mente um do outro.

- Você não vai me bloquear?

- Não tenho nada a esconder de você nem de ninguém. Você me considera um monstro. O que você verá é inócuo se comparado aos horrores que você me atribui em sua imaginação. Além disso, vou estar ocupado vendo os seus segredos...

- Quer dizer que eu vou ler a sua mente enquanto você lê a minha mente?

- Eu já lhe disse que a mente não é um livro, para que possa ser aberta e lida a nosso bel-prazer. Você ainda não entende essas sutilezas.

Harry suspirou.

- O que eu quero saber é se não vamos misturar nossos pensamentos se lançarmos Legilimens um sobre o outro ao mesmo tempo.

Snape fez um gesto de impaciência.

- Se você se concentrar, não.

Harry respirou fundo, preocupado. Suas experiências anteriores com Snape entrando em sua mente não haviam sido nada agradáveis nem tranqüilas.

- Vou contar até três - avisou Snape. - Um, dois, três... Legilimens!

- Legilimens!

Harry sentiu os olhos de Snape invadindo-lhe a mente e indo direto para as cenas mais humilhantes de sua infância. Harry se esforçou por se concentrar na mente de Snape.

Snape pequenino, no colo de sua mãe. Era apenas um bebê, e sorria para sua feia mãe. Até que Snape não era feio, quando bebê. Seus cabelos não eram tão oleosos, seu nariz não era tão grande e havia um brilho de esperança em seus olhinhos negros.

Um homem gigantesco surgiu à frente de Snape. Harry se encolheu ao vê-lo - era como se sentisse o medo de Snape. A mão pesada do homem adulto esbofeteou Snape. O pequenino Snape, que não devia ter nem cinco anos, emitiu um rosnado de dor e ódio e rolou pelo chão, o sangue escorrendo-lhe da boca.

Snape numa floresta, de mãos dadas com uma garota de cabelos ruivos. Uma névoa se ergueu da terra, turvando o céu estrelado.

A mesma garota, na aula de Poções com Slughorn. Snape mostrou-lhe algo escrito em seu livro, e os dois riram. Snape baixou a cabeça para que o professor e os colegas não pudessem vê-lo rindo.

Snape um pouco mais velho, com uns 17 ou 18 anos, transando com uma garota indiana, claramente mais velha do que ele. Harry ficou assistindo os dois transando - ela gozou uma, duas, três vezes, e ele continuou, e continuou... Eles pareciam perfeitos juntos, a pele dourada da garota contrastando com a pele pálida de Snape. Harry teve ciúmes da garota e não quis mais vê-los.

Snape, ainda muito jovem - teria talvez uns 19 ou 20 anos - sendo estuprado por um Comensal mais velho. A violência da cena era chocante. Harry quis dar um chute no meio das pernas do desgraçado.

Snape e outros amantes. O devotado amante que Harry vira na cena com a garota indiana se transformou por completo, dando lugar a um homem fechado, ardiloso e brutal.

Um salão de espelhos, e a imagem de Snape em todas elas. A imagem de Voldemort se agigantando. Mais uma vez, involuntariamente, Harry se encolheu.

Snape encolhido num canto, como um passarinho assustado, sem ter para onde fugir. Pálido, muito magro, os olhos arregalados de horror. Em meio à escuridão, o rosto de Dumbledore se destacou. Dumbledore estendeu a mão a Snape, e este a segurou.

Snape lutando contra Fluffy. Snape com as vestes em fogo após tentar salvar Harry no jogo de Quadribol. Snape percorrendo o castelo em busca de Harry, com uma expressão tensa, e depois relaxando ao ver Harry junto à estátua da bruxa corcunda e de um olho só que guardava a passagem para Honeydukes.

Snape falando com Harry em seu quinto ano, com uma expressão de orgulho: "Sim, Potter. Esta é a minha tarefa."

Mais uma vez, Dumbledore e Snape. Não me peça isso, Mestre. Tudo menos isso.

~*~*~

Quando Snape interrompeu o feitiço, Harry estava exausto e chocado com tudo o que vira. Nos olhos de Snape, Harry viu espelhados seus próprios sentimentos. Será que havia em sua mente cenas tão dolorosas como as que vira na mente de Snape?

- Era a sua tia, aquela que quase lhe deu uma pancada com a frigideira e que o fazia de escravo?

Harry fez que sim com a cabeça.

- E era o seu tio, aquele que o trancava no armário?

- Era.

Snape se levantou, num gesto brusco, e ficou andando de um lado para o outro.

Harry mordeu o lábio inferior, embaraçado.

- Bem, você já sabia dos meus tios. Você já havia lido minha mente antes, nas aulas de Oclumência.

- É verdade, eu já havia visto cenas de abuso. - Snape o fitou intensamente. - Naquele momento, eu tinha muitas outras coisas com que me preocupar. Agora...

- Agora o quê?

- A culpa é inexorável.

A princípio Harry não entendeu, mas aos poucos as peças começaram a se encaixar: Snape se sentia culpado pela infância de Harry, porque, se ele não houvesse contado da profecia a Voldemort, talvez os pais de Harry não tivessem morrido.

Harry queria poder dizer que perdoava Snape, e queria também se desculpar por nunca ter entendido que Snape estava tentando ajudá-lo, o tempo todo. Por que lhe era tão difícil fazer qualquer uma dessas coisas?

- Estou cansado - disse Harry, enfim, não agüentando mais tantas emoções conflitantes.

- Já quer desistir? O que aconteceu com o seu belo discurso de sintonia mental?

- Não é isso. É só que... acho que não vai fazer bem para nenhum de nós se ficarmos nos afogando na culpa e nas más recordações. Não podemos tentar algo mais leve?

- Sinto muito. Não creio que vá achar rosas ou algodão-doce na minha mente.

Harry riu.

- Algodão-doce... Isso me lembra que eu comprei almendras garrapiñadas no restaurante do hotel.

- Almendras garrapiñadas?

- É. Torrones de amêndoas - explicou Harry, exibindo seu vocabulário espanhol recém-adquirido enquanto tirava do bolso um pacotinho e o estendia a Snape.

Snape provou uma e fez cara feia.

- Intragável, e um perigo para os dentes.

- Ora, vamos! Deve existir algum doce de que você goste!

Snape olhou para o céu.

- Vocês viciados em açúcar são impossíveis: simplesmente não conseguem acreditar que exista alguém que não compartilhe do seu vício.

Depois de alguns minutos, Harry se sentiu pronto a recomeçar os treinos.

- Vou tentar me concentrar em coisas mais idiotas agora.

Snape ergueu uma sobrancelha e fez a contagem regressiva para lançar Legilimens outra vez.

Harry passou um longo tempo vasculhando as memórias da adolescência de Snape e descobriu que ele gostava de ler aventuras de navios e piratas, e que tinha uma queda pelo Capitão Ahab. Com certeza Snape ficaria embaraçado se soubesse que Harry estava vendo aquelas memórias, pensou Harry, e se perguntou o que Snape poderia estar vendo em sua mente. Arrepiou-se e perdeu a concentração. Então viu o que Snape estava vendo: o momento em que Harry beijara Cho. Seus pensamentos se misturaram e entrelaçaram. Snape tinha os olhos fixos em Harry, e Harry pôde ver a imagem claramente: Snape o tomava nos braços e o beijava. Um calor intenso se espalhou pelo corpo de Harry. O beijo de Snape era ávido e desesperado, e invocava em Harry um desejo estonteante.

- Não vamos evoluir muito desse jeito - reclamou Snape, interrompendo o feitiço.

Ficaram em silêncio no banco por longos minutos. Harry voltou a comer amêndoas confeitadas, tentando parar de pensar no beijo.

- Nunca poderia imaginar que você seria capaz de participar de um ménage à trois - disparou Snape, à queima-roupa.

Harry teve de puxar pela memória para localizar ao que Snape estava se referindo. Então se lembrou de Kathryn e Edward.

- Eu lhe disse que havia muitas coisas que você não sabia sobre mim - declarou Harry, sentindo-se vitorioso porque Snape estava com ciúmes dele.

- Quem eram os seus parceiros?

- Kathryn era minha colega no curso para Aurors. Edward era namorado dela.

- Ela é Auror agora?

Harry sorriu.

- Não, ela não passou nos exames e teve de desistir. Na verdade, ela é do tipo que gosta de festas e diversão. Nada a ver com o que fazemos no Ministério. Nosso trabalho, na verdade, é muito entediante.

Snape estreitou os olhos para Harry. Harry não ia lhe dizer que Kathrin e Edward não haviam significado muito para ele, e que nunca mais os vira. Na verdade, Ginny havia sido o único amor de sua vida até aquele momento.

- Já que você tomou a liberdade de me fazer perguntas pessoais, eu também tenho duas perguntas a lhe fazer - disse Harry, ansioso.

- Quer saber sobre Rosier?

- Era ele, o canalha que...

- Sim. O pai de meu colega Evan Rosier. Um velho aliado de Voldemort; um dos primeiros Comensais da Morte. Eu me vinguei dele, depois. Foi uma vingança sutil, mas terrível.

- Você o matou?

- Oh, não, a morte seria algo bom demais para ele. Apenas despejei, sutilmente, uma poção no copo de firewhisky dele. Uma poção que impediu que ele fizesse o que fez a mim com qualquer outra pessoa. Para sempre.

Harry teve um arrepio e achou que não era o caso de pedir detalhes.

- Suponho que a outra pergunta seja sobre a sua mãe - disse Snape.

- Isso.

- Ela era minha amiga. Mas eu achei que ela havia traído minha confiança. Fui ríspido com ela, e nunca mais conversamos. - Snape baixou os olhos. - Creio que esse foi o meu primeiro grande erro.

 

Anterior
Próximo
Schola Obscura (Índice)
Fanfiction (Índice)
HOME

Reviews

Ptyx, Junho/ 2006