PARTE 3 - Poção Mandala

 

Na semana seguinte, na aula de Recuperação em Poções, Harry encontrou Kai sentado à escrivaninha de Snape, traçando desenhos em um pergaminho que ocupava todo o espaço da superfície do móvel.

Snape o convidou a entrar e a sentar-se em uma cadeira em frente a Kai.

- Potter - disse Snape, em pé diante dos dois alunos -, creio que já é o momento de passarmos a um outro estágio do seu aprendizado, em que você poderá ser mais útil a Hogwarts e a todo o Mundo Mágico.

Harry o fitou com interesse.

- O sr. Clauschee e eu temos trabalhado juntos já há alguns meses - prosseguiu Snape. Kai ergueu os olhos para Harry, depois para Snape. - Esse projeto, que chamamos de Poção Mandala, envolve a transformação do ritual Navajo do pólen em uma poção de cura. Trata-se de um projeto absolutamente secreto. Se alguém lhe perguntar o que vem fazendo aqui, diga apenas que continua cursando Recuperação em Poções.

- Certo.

- Muito bem. A idéia toda parte da descoberta dos poderes mágicos do pólen por parte dos Navajos. O pólen é um componente de elevado poder curativo. A cura exercida pelo pólen tem como base a restauração da harmonia interna do ser humano. E a Cerimônia de Cura procura realçar ao máximo esses poderes curativos.

- O senhor quer criar uma poção com esses mesmos poderes? Parece interessante.

Kai se levantou, olhando de Snape para Harry e deste de volta a Snape.

- Que bom que vocês vão trabalhar juntos! Vocês têm a proteção do Deus do Fogo e do Morcego e só juntos poderão derrotar o Trovão do Inverno.

Harry deu um sorriso irônico.

- O Morcego é ele - disse.

- Potter...

O professor encarou-o com ar ameaçador.

Kai sacudiu a cabeça.

- Não, Harry - disse ele. - O Morcego foi quem lhe deu aquela Capa da Invisibilidade que você usou para ir até o Departamento de Mistérios. Ele é o seu protetor. E o Deus do Fogo ajuda o professor Snape em suas poções. O Deus do Fogo é quem domina a cor negra. Ele só se veste de preto. Ele usa o fogo para fazer as pessoas obedecerem. Ele e o Morcego foram oferecer a varinha da prece ao Trovão do Inverno. O Deus do Fogo lançou fogo com tanta força que a fumaça encheu a casa do Trovão de Inverno e esta ficou totalmente escura. Então o Trovão de Inverno viu que estava enfrentando um deus poderoso, e resolveu fazer um acordo.

- Kai, Voldemort não é o Trovão de Inverno - disse Harry. - Ele não vai fazer nenhum acordo conosco.

- É o que o professor Snape fica me dizendo. Eu acredito nele, não vou dizer que ele está errado. Talvez tenha alguma coisa que eu não tenha entendido direito no mundo de vocês. Vocês falam como se o Lord das Trevas fosse mau e não houvesse como mudar isso. Como se ele não pudesse se... como é que se diz?

- Se redimir - sugeriu Snape.

- Isso. O meu povo não vê as coisas assim. Não é possível que alguém não possa se redimir!

Snape e Harry se entreolharam com a compreensão de quem já viu o Mal, e sabe que qualquer esperança de redimi-lo é ingênua e vã. Kai franziu o cenho, um tanto aborrecido.

~*~*~

Aos poucos, tornou-se evidente que Harry era uma nova pessoa, que ganhara novo ânimo. Nas aulas de Oclumência, Dumbledore se mostrava extremamente satisfeito com seu desempenho. De repente, a suavidade de Dumbledore não irritava mais a Harry. Havia coisas mais sérias com que se preocupar. Um dia, Dumbledore lhe disse que ele evoluíra tanto que estava na hora de começar a estudar Legilimência.

Treinava o time de Quadribol com mais empenho e entusiasmo, também.

No final de um de seus treinos, Draco - que agora era Capitão de Slytherin - e seus comandados haviam partido para cima dos Gryffindor com as provocações de sempre. Harry fingira não os ver e se retirara, sob o olhar furioso de Ron, que queria enfrentá-los.

- Você é um boiola mesmo - dissera Ron.

Harry lhe fizera uma careta.

À noite, deitado em sua cama no quarto dos Gryffindors, Harry pensou nas palavras de Ron. Sabia que o xingamento de Ron não deveria ser tomado ao pé da letra. Sabia que Ron andava irritado porque, depois daquela primeira batalha campal de Slytherin contra Gryffindor, Hermione se aproximara de Axel. Sempre que havia algum problema nos corredores, Hermione recorria ao Monitor Chefe, em vez de pedir ajuda a ele, Monitor de Gryffindor. Axel era bom aluno, inteligente e bem-educado. Ron estava se mordendo de ciúme. Em todo o caso, a verdade é que, desde o início do ano, Harry vinha pensando se não seria mesmo um... boiola. Afinal, ele não se interessava muito por garotas. Quando se interessava, era algo assim como ocorrera com Cho: ele achava a garota bonita e achava que seria uma boa idéia se as pessoas os vissem juntos. Mas, quando chegava a hora H, ele perdia o interesse.

E já há algum tempo notara que gostava de observar os homens. De qualquer idade! Agora que Sirius morrera, conseguira confessar a si mesmo que... sentira uma paixão adolescente por ele. Ele era tão bonito! Desde a morte de Sirius, contudo, não se interessava por ninguém seriamente.

Snape... mexia com ele de um jeito estranho. Harry não entendia bem o que era aquilo. A reação dele quando o encontrara desmaiado junto ao véu e aquela viagem de volta no Testrália... Não, pensou Harry. Não Snape. Qualquer um, menos Snape. No entanto, seu corpo dizia outra coisa, e dizia de forma insistente.

~*~*~

Naqueles primeiros dias, Snape, Kai e Harry haviam trabalhado apenas em pesquisas teóricas sobre os componentes da Cerimônia de Cura Navajo e na tentativa de elaborar uma receita. Ou seja, nada de trabalho prático ao caldeirão. Fora uma fase bastante interessante e até divertida, embora Harry também não se interessasse muito por pesquisas.

Depois de cerca de duas semanas, eles haviam listado os ingredientes e a ordem em que deveriam ser acrescentados - sempre seguindo a seqüência original praticada pelos Navajos.

A não ser pelas escamas de cobra, os ingredientes a serem utilizados na Poção Mandala eram bem diferentes dos de qualquer poção que Harry já preparara: pólen de flores, areia, farinha de milho, abóbora, tabaco, feijões, pedaços de cactus, de iúca e de cedro, ocre, cortiça, raízes, penas de pássaros, pedras (gipsita, arenito vermelho), carvão (de carvalho e cedro). Todos baratos e fáceis de serem obtidos. E o que era melhor: fáceis de se lidar e nada perigosos.

No entanto, havia dois problemas. Primeiro: era preciso encontrar o meio líquido ideal para a poção, já que todos esses ingredientes eram bastante sólidos. Segundo: como seria testada a poção? Em animais? Animais entram em depressão? E como se sabe se eles saíram ou não da depressão? E seria necessário forçar a depressão em um animal? Snape dissera que há várias poções capazes de induzir a depressão, que isso não seria problema, mas que os animais têm reações muito diferentes dos seres humanos, e que esses testes não teriam muita validade.

Snape dissera a Kai e Harry que não se preocupassem com o segundo problema, que ele encontraria uma forma de testar a poção - Harry olhara para Snape com ar desconfiado. Será que ele seria capaz de utilizar cobaias humanas? -, e que passariam a se concentrar na escolha do meio líquido ideal.

Kai dizia que não seria bom que a poção viesse a fermentar. A idéia era que a poção transmitisse energias de vida, e não de morte - para ele, a fermentação implicava decomposição, ou seja, morte. Portanto, a água pura não seria um bom meio, pois não preserva os componentes - principalmente os vegetais.

Snape passara, então, a testar diferentes meios. Kai e Harry às vezes cumpriam apenas tarefas mecânicas - picar, moer, fatiar, espremer ingredientes. Outras vezes, Snape os mandava fazerem pesquisas. Kai, muitas vezes, nem estava presente. Snape o mandava pesquisar na biblioteca ou fazer suas lições de casa.

Em uma daquelas aulas, Snape mandou Harry pesquisar em um livro de poções Navajo enquanto ele e Kai trabalhavam com os ingredientes e o caldeirão. Harry deveria fazer anotações sobre possíveis meios líqüidos para a poção.

A princípio, Harry se sentiu um pouco excluído. Desde que passara a pensar em Snape de forma diferente, Harry preferia trabalhar perto dele, sempre que possível. Aos poucos, no entanto, alguns detalhes do livro começaram a interessá-lo, e ele passou a se envolver com o que lia.

- Escutem, esse... Chá Mórmon... não seria um bom veículo para a poção? - perguntou, de repente, com um brilho nos olhos.

- Chá o quê? - perguntou Snape.

Kai largou o que estava fazendo.

- É isso! Como pude não pensar nisso antes! - Kai chegou junto de Harry, radiante. - A Ephedra!

- Querem me explicar de que estão falando? Por que acham que a Ephedra forneceria um bom meio? - perguntou Snape, irritado.

- É um chá preparado com base em dois tipos de arbustos que crescem nas montanhas, para que os carneiros não os comam - explicou, um tanto atabalhoadamente, Kai. - Tem o verde-amarelado e o verde-arroxeado. As plantas devem ser secas ao sol e depois fervidas por uns dez, quinze minutos para fazer o chá.

- Diz aqui que é da família da Ephedra - acrescentou Harry. - E que todos os animais comem, porque faz muito bem.

- Esse chá é quase um símbolo da nossa cultura. Dizem que foi feito pelos deuses - completou Kai.

- E como vamos conseguir essa planta... divina? - perguntou Snape.

- Posso pedir ao meu pai para mandar encomendar com meus tios.

- Muito bem, Kai. Então faça isso - disse Snape. - A propósito, você não ia encomendar também a datura?

Kai levou a mão à boca, em um típico gesto infantil de quem está envergonhado.

- Esqueci!

Snape fez uma careta.

- Você não quer que eu tire pontos de minha própria Casa, quer?

- Não, senhor! Não vou esquecer de novo! É que, sabe, eu não posso usar as corujas de vocês. Meu povo acha que as corujas são presságio de morte. E o meu corvo só voltou ontem de sua última viagem.

Kai parecia mesmo envergonhado. Harry não pode deixar de rir dos dois Slytherins.

~*~*~

Três dias depois, chegara uma coruja Navajo com os ingredientes. Agora eles já tinham a base, o chá de Ephedra, e podiam começar a acrescentar os ingredientes na ordem em que apareciam na cerimônia. A cada passo, Snape verificava as propriedades da poção com alguns indicadores de cores. A cada dia de aula, eles evoluíam uma etapa.

Havia agora entre eles não só respeito como uma espécie de tímida camaradagem. E quando, sem querer, seus braços, ou suas mãos, ou um braço e uma mão se tocavam... Harry não só não recuava como tentava prolongar o contato.

À noite, quando se masturbava sob os cobertores de sua cama de colunas, era a imagem de Snape que ele invocava para acompanhá-lo.

Tentava não pensar muito nisso, mas não conseguia. Pensava o tempo todo, e não entendia a si mesmo.

Certa noite, em mais uma aula de Recuperação, logo antes das férias de Natal, Snape o deixou mexendo a poção. Quando Snape se aproximou dele, por trás, para corrigir-lhe a postura, e segurou-lhe o braço para indicar o jeito certo de lidar com a colher, Harry, num louco impulso, apoiou a cabeça junto ao tórax do professor. Este o deixou ficar assim por um instante, talvez perplexo demais para reagir. Então, com absoluto controle, tomou a colher de suas mãos e a largou apoiada na parte de dentro do caldeirão. Depois segurou os dois ombros do aluno com firmeza e o virou para si.

 

- Potter. O que é que está passando nessa sua cabeça de vento?

A expressão de Harry mesclava desejo, desespero e pavor. Ele ficou totalmente paralisado. O olhar com que Snape o fitou era tão intenso que parecia trespassá-lo.

- Esqueça - murmurou o professor, em seu tom baixo mais perigoso. - Não vai acontecer, está entendendo? Isso que está se passando em sua cabeça não existe. Eu sou um ex-Death Eater. Você sabe o que fiz quando fui Death Eater? Tem alguma idéia?

Harry sacudiu a cabeça, trêmulo.

- Não tem. Claro que não tem. Se tivesse, estaria muito longe daqui. Trataria de se manter o mais longe possível do feio morcegão.

- Não...

- Quieto, Potter. Não lhe dei autorização para falar. Pois quando eu fui Death Eater, Potter, eu torturava as pessoas. Eu era muito bom nisso! O meu Lord sempre me chamava, quando queria extrair algum segredo da vítima, quando queria que a vítima não fosse morta. Porque o que me excitava, não era matar a vítima. Não. Era fazê-la sofrer. Fisica e psicologicamente. Eu era capaz de gozar vendo a vítima gritar, se contorcer... ou apenas arregalando os olhos de puro terror!

Profundamente enojado, Harry fez uma careta. Snape prosseguiu, implacável:

- E você pensa que isso passa? Que é algo que se possa esquecer, e continuar a viver sem isso? Ah, você se engana. Aquele mesmo prazer que eu sentia, eu sou capaz de sentir hoje, igualzinho. Eu gosto de fazer as pessoas sofrerem. Isso se chama sadismo, Potter. Eu sou sádico. Mas você... você é o Garoto de Ouro dos Gryffindor. Você é o queridinho do Diretor. Se eu encostar um dedo em você, estou no olho da rua. Agora, não se iluda. Eu adoraria fazê-lo gritar de dor. Adoraria tê-lo sob as minhas botas... eu pisaria bem forte, e de preferência com ferraduras na sola.

Sem conseguir mais encarar Snape, Harry baixou os olhos.

- Vá embora. E lembre-se do velho ditado: cuidado com o que deseja, porque pode conseguir. Reflita sobre o que lhe disse e pense se quer mesmo continuar trabalhando comigo. Não precisa voltar aqui enquanto não souber o que realmente quer. Se, por alguma razão estranha, você quiser aprender mais sobre poções e contribuir para a saúde mental do mundo mágico, tire essas fantasias da cabeça. O relacionamento entre nós terá de ser absolutamente formal, entre professor e aluno. Entendeu?

Harry nem mesmo respondeu à pergunta. Snape o empurrou de leve na direção da porta, e ele se deixou conduzir. Saiu do laboratório sem dizer nada.

~*~*~

Harry correu ao banheiro mais próximo e vomitou. Depois foi para o quarto e passou mal durante a noite inteira. Vegetou durante o resto da semana, sem ânimo para nada.

Por quê? Por que ele tivera de lhe dizer tudo aquilo? Talvez fosse verdade. Devia ser verdade, senão ele não diria? De qualquer jeito, o Snape que Harry vira naquela cena na mente de Dumbledore... não estava pagando seus pecados? Se ele agora espionava para a Ordem, se trabalhava em poções para ajudar as pessoas, tudo isso não tinha também um significado?

Harry não sabia, não sabia nada. Sabia apenas que seu mundo, de algum modo, desmoronara.

Ron nem percebera nada de diferente no amigo. Como sempre, o Monitor estava preocupado demais com seus próprios problemas. Quando as aulas foram interrompidas, Ron seguiu para A Toca; Harry preferiu ficar em Hogwarts. Antes de partir para a casa dos pais, Hermione tentara fazê-lo se abrir, mas Harry se fechara hermeticamente. Kai, no entanto, que também ficara em Hogwarts, não o deixou em paz durante todo o período das festas. O menino parecia obcecado com ele. Não parava de insistir que Harry deveria se submeter à Cerimônia de Cura e que ele, Kai, estava habilitado a executá-la para ele.

O dia de Natal transcorreu para Harry quase como uma rotina. Era tudo sempre assim: Flitwick montava a árvore, Dumbledore provocava a todos, Snape ficava com a sua eterna cara emburrada.

Passada a euforia das festas e presentes, Kai voltou a importuná-lo:

- Com a mandala, você vai conseguir entender o que está acontecendo com você e com tudo o que está preocupando você: os seus inimigos, os seus aliados, o lugar onde você mora, tudo isso vai estar representado na mandala. Você vai conseguir absorver o poder deles através da mandala. E vai conseguir encontrar o seu lugar no meio disso tudo. Eu não sei explicar direito, Harry, mas é mais ou menos isso. Eu poderia falar as palavras sagradas, mas é melhor deixar isso para a hora do ritual.

Harry apenas meneou a cabeça, com ar incrédulo.

Os estudantes que haviam ido passar as férias com as famílias retornaram, e as aulas recomeçaram. Quando, pela undécima vez, em pleno café da manhã no Grande Salão, Kai veio com essa mesma proposta, Harry não resistiu mais:

- Está bem! Menino dos infernos! Faço qualquer coisa para você me deixar em paz.

O sorriso triunfante de Kai o fez temer que tivesse caído em uma terrível armadilha.

- É assim, Harry. O melhor é praticarmos a cerimônia no sábado. Eu faço a pintura no sábado ao final da tarde, e você e eu teremos de passar boa parte da noite na mandala.

- Er... Não entendi nada. Onde é que você vai fazer essa pintura?

- Eu ouvi dizer que existe uma tal de Sala da Requisição que...

- Perfeito. É um lugar perfeito, Kai. Você fica trabalhando lá à tarde e à noite eu vou para lá. O que é que eu vou precisar fazer?

- Nada - disse Kai. - Só entrar dentro da mandala quando eu mandar, ficar quietinho e se concentrar nos... ah!

- O que foi?

- É que... meu povo está acostumado com os símbolos, e acho que é por isso que o ritual funciona para eles. Mas você não conhece esses símbolos. Eu acho que vou ter de explicar para você. Contar a história de cada um. Explicar o que eles significam.

Harry suspirou.

- Hoje... você vai trabalhar no laboratório com o professor Snape?

- Eu vou falar com o professor Snape e tenho certeza de que ele vai me deixar ir falar com você, se eu explicar...

Harry não queria conversar sobre nada que envolvesse Snape. Harry não queria nem mesmo pensar sobre nada que envolvesse Snape. Por isso, interrompeu Kai:

- Certo, vamos nos encontrar às 18 horas na Sala de Requisição. Assim você dá uma olhada no local também.

- Combinado!

~*~*~

- O centro é o Local do Aparecimento. Vai sempre ter um lago profundo, uma fogueira, o lar dos deuses, ou o herói principal no centro da pintura. Em torno desse ponto central, os Poderes Sagrados que vão ser convocados são colocados nas direções cardeais: Norte, Sul, Leste e Oeste. Esses Poderes podem ser o Povo Vento, o Povo Estrela, o Povo Cáctus, o Povo Ciclope, o Povo Búfalo, as Aves Trovões, ou o Povo Serpente. No Nordeste, Noroeste, Sudeste e Sudoeste estão os seres secundários. Geralmente, estes são quatro plantas sagradas: milho, feijão, tabaco e abóbora.

Kai levara consigo alguns livros de mitologia e de gravuras de mandalas Navajo e, enquanto falava, ia apontando para as figuras.

- Então veja - continuou ele, apontando uma mandala a Harry. - Os poderes sagrados vêm sempre de quatro em quatro, ao redor da mandala. Quanto mais grupos de quatro a mandala tiver, mais poder está envolvido. E aqui, ao redor da pintura costuma ter uma pintura de proteção, como a do Guardião do Arco-Íris. Sempre existe uma abertura para o Leste, com dois guardas ali para proteger a entrada. Esses guardas podem ser duas serpentes, dois ursos, dois insetos, ou outras criaturas pequenas.

- E o que são esses montes? - perguntou Harry, indicando círculos colocados do lado de fora da área principal da pintura.

- As montanhas sagradas. Elas são representadas por círculos, cada uma com a sua cor, e também são colocadas nas quatro direções.

E Kai prosseguiu, durante mais de duas horas, explicando os símbolos de sua cultura a Harry.

~*~*~

No sábado, quando Harry entrou na Sala da Requisição, seu queixo quase caiu de surpresa. A Sala havia se transformado em um hogan de forma arredondada - como uma grande empada de barro. Kai, com suas roupas típicas de belbutina, adereços de prata e turquesa, e o corpo todo pintado ritualisticamente, cantava em sua língua natal e jogava pólen sobre uma bela pintura em forma de mandala sobre o chão.

Havia alguns bancos de barro dispostos ao redor do hogan. Harry sentou-se em um deles e ficou assistindo por alguns minutos, fascinado. A pintura era feita com areia vermelha, azul, amarela, branca e preta. Alguns potes de cortiça ao redor da pintura indicavam que havia sido dali que Kai retirara a areia colorida. Havia também um bastão de madeira com partículas de areia colorida espalhadas na superfície. Provavelmente Kai o usara para dar forma às figuras.

Então Kai se aproximou e conduziu Harry até perto da mandala, fazendo-o contorná-la uma vez e explicando-lhe cada figura antes de entrar dentro dela. Ajudou-o a se sentar na posição correta. Sempre cantando, Kai umedeceu a palma das mãos com remédios à base de ervas, começou a pressionar partes do corpo de Harry, pressionando, em seguida, as partes correspondentes em seu próprio corpo.

Aos poucos, as imagens da mandala se gravaram na mente de Harry, e ele as via mesmo se fechasse os olhos. Como que vindos do nada, os simbolismos começaram a fazer sentido para ele, aplicando-se à sua vida. As quatro montanhas eram, para ele, as quatro Casas: Gryffindor, Ravenclaw, Hufflepuff e Slytherin. Nas figuras de poder - Povo Nuvem, Povo Estrela, Povo Trovão, Povo Cíclope - Harry não identificava exatamente pessoas, mas poderes. Alguns deles ele já conhecia e dominava; outros lhe eram ainda desconhecidos. O Povo Estrela, por exemplo, evocava-lhe um motivo claramente sexual. O Povo Trovão, por sua vez, evocava-lhe tudo aquilo que Harry não conseguia controlar. Lembrava-lhe também, pela forma de raio da figura, sua cicatriz.

Cada uma daquelas gravuras começava a imprimir-se no corpo, na mente e na alma de Harry. Era impressionante. Era como se Harry estivesse, não só ganhando um novo sentido, como amplificando todos os outros. E, acima de tudo, Harry começava a se sentir... integrado.

Quando a cerimônia terminou, e Kai o conduziu para fora da mandala e passou-lhe um cantil de água, Harry cambaleou. Totalmente zonzo, tentou tomar a água para ver se recuperava o contato com o chão, com a realidade - ou, ao menos, com a realidade como a conhecia. Mas... a água... aquilo era água? Nem a água parecia mais igual.

Kai o fitou com uma expressão preocupada, e o fez sentar-se em um banco.

- Harry? Você está bem? Fale comigo!

- Ah... O castelo... ah. Nada mais faz sentido, Kai. As palavras não fazem mais sentido. Eu tenho vontade de dar uma grande gargalhada ou um uivo.

- Mas Harry, você está falando comigo, as palavras fazem sentido, sim. Fique calmo. Agora eu preciso desmanchar a pintura. Faz parte do ritual. Fique aí. Depois eu volto.

Como que num sonho, Harry viu Kai, cantando, recolher a areia em uma pele de camurça e sair. Sabia que Kai teria de espalhar a areia por todas as direções de onde havia vindo, andando primeiro para o Leste, depois Sul, então Oeste e, finalmente, Norte.

Sozinho, Harry tentava controlar a intensidade do que sentia. Tudo parecia intenso demais: as imagens, os cheiros, os ruídos, as sensações. Era, também, como se centenas de pessoas estivessem habitando dentro de si.

Poucos minutos mais tarde, Kai retornou, trazendo consigo o professor Snape. Os dois se aproximaram de Harry com ar preocupado. Kai se sentou a seu lado e tentou abraçá-lo, mas Harry se encolheu e recuou.

- De-desculpe. É que... tudo parece... demais.

- Potter - falou Snape, em voz bem baixa -, descreva-me o que está sentindo.

- Todos os meus sentidos parecem estar à flor da pele. É como se eu fosse explodir. Mas não é só isso. É como se... todo o castelo... estivesse dentro do meu corpo. Eu sinto cada pedaço do castelo, cada parede...

Kai se levantou de súbito.

- O castelo agora é para ele como um hogan!

A voz aguda do menino fez com que Harry estremecesse.

- Kai - disse Snape -, fale baixinho e não se mexa muito rápido, senão você o perturba. Isso é... fantástico. Extraordinário. Resta saber se irá durar.

Harry fez uma careta horrível.

- Por favor, faça com que passe. Eu não vou agüentar isso muito tempo!

- Calma, Potter. Se não passar, você irá se acostumar logo. É como quando... se faz uma lavagem nos ouvidos. Você já passou por essa experiência?

Harry sacudiu a cabeça. Snape deu um sorriso torto.

- Depois da lavagem, as pessoas passam a ouvir tão melhor que, muitas vezes, se irritam, passam a achar o mundo insuportavelmente barulhento durante algumas horas ou até um dia. Ou quando você troca as lentes dos óculos, e tudo lhe parece muito grande, ou muito nítido... ou inclinado, se você tiver astigmatismo. Só que com você isso está acontecendo com os cinco sentidos. Deve ser mesmo uma tortura e tanto.

Kai se aproximou de Snape e segurou-lhe a mão.

- O que a gente pode fazer para ajudá-lo?

- Acho que o melhor é vocês dois dormirem aqui mesmo. É meia-noite agora. Vou dar uma Poção do Sono para ele dormir. Você fica aqui, para o caso dele acordar e entrar em pânico ou algo assim. Qualquer coisa, me chame.

Snape nem terminara de falar, um frasco surgiu às suas mãos.

- Essa Sala é maravilhosa! - exclamou Kai.

Snape destampou o frasco e se aproximou de Harry. Entregou o frasco nas mãos do aluno.

- Tome tudo. Vai fazer você dormir por oito horas. Quando acordar, espero que esteja se sentindo melhor. Eu estarei aqui.

~*~*~

E estava. Quando Harry acordou, em uma reprodução quase exata de seu dormitório Gryffindor replicado pela Sala da Requisição, o Chefe de Slytherin estava ao pé de sua cama.

O Castelo não o atordoava mais de maneira tão forte. Mas estava ali, presente, palpável, dentro de si.

Harry se sentou, devagar. Viu que Kai ainda dormia, na cama a alguns metros de distância. Encarou o professor.

- E então, Potter?

- É estranho. Ainda está aqui. Mas não é mais tão... terrível.

- Você já está se acostumando. Mas talvez seja melhor não ir às aulas hoje. Vou pedir ao Diretor que o dispense. Descanse bastante. E não deixe de se alimentar.

Aquilo estava ficando engraçado: Snape dando-lhe recomendações, como se fosse o chefe de sua Casa. Não, como se fosse... sua mãe. Harry nunca tivera alguém que o tratasse daquela forma. Exceto Molly, é claro.

Snape. Aquele era Snape. De repente, tudo se encaixava. Não era só o Castelo que habitava agora dentro de Harry: as próprias pessoas ali dentro pareciam ter o seu lugar, e terem relações entre si, e todas elas ligadas diretamente a Harry. E Snape, Snape era, sempre havia sido, seu protetor. Como fora tolo em não ter visto isso desde o início!

- O que foi, Potter? Você está bem?

- Ah. Desculpe... É que... não estou acostumado ainda. O senhor...

- O quê?

- Não sei bem. Por favor... eu quero voltar a trabalhar com o senhor.

- Este não é o melhor momento para discutirmos isso. Você está estressado. Venha ao meu laboratório na próxima terça-feira, no seu antigo horário.

Snape se aproximou da cama de Kai e sacudiu o menino de leve, pelo ombro. Kai abriu os olhos e fez uma careta.

- Ahn?

- Hora do café, pirralho. Potter está dispensado das aulas de hoje, mas você não está. É melhor Potter não ter de ir tomar café no Grande Salão, é muito agitado lá. Escovem os dentes e tomem o café aqui mesmo. Depois você vai para a sua aula de... Transfiguração, não é? E Potter... vai dar um passeio lá fora. Por estranho que possa parecer, não está frio hoje. Há um belo sol lá fora e os pássaros estão cantando.

Snape ergueu uma sobrancelha e deu-lhe as costas. Harry não conseguiu conter o riso. O mundo estava mesmo muito estranho desde que entrara e saíra da mandala Navajo.

~*~*~

Sentados à mesa de café na Sala da Requisição, Kai e Harry atacavam os bolinhos.

- Snape é sempre assim com os Slytherins? Paternal? - perguntou Harry, servindo-se de chá.

- Oh não! Ele finge que é frio e distante. Mas, sempre que precisamos, ele está lá para ajudar.

- Ah, então não é muito diferente... Mas ele não humilha vocês na aula, nem tira pontos, nem fica perseguindo...

- Claro que não! Ele é Chefe de Slytherin e tem de nos defender. Quer dizer, às vezes ele fica brabo. Aí, sai da frente. Mas isso é raro de acontecer.

Harry suspirou e deu um gole em seu chá.

- Vocês dois têm personalidades muito fortes - disse Kai, observando-o. - Mas o Morcego e o Deus Negro protegem vocês, então vão acabar se entendendo.

- Acha mesmo?

Kai, que acabara de dar uma grande mordida em seu bolinho, fez que sim com a cabeça.

~*~*~

Caminhando perto da cabana de Hagrid, Harry tentava ordenar seus pensamentos. Fora do castelo, sentia-se melhor. Aquela sensação de estar ligado a cada molécula do castelo, e a cada célula de seus habitantes se atenuava bastante.

Então aquele era o segredo de Dumbledore. (Ou mais um dos segredos de Dumbledore.)

Mas Harry não queria pensar sobre Dumbledore agora. Queria entender o que sentia por Snape. Ou melhor... não, não precisava mais entender isso. Já sabia. Sabia que estava apaixonado por Snape. Não tinha mais como fugir disso. E sabia também que Snape não era, de forma alguma, indiferente a ele. Com a nova consciência, que adquirira dentro da mandala, tudo lhe era muito mais claro. O próprio fato de que Snape sempre o protegera, mesmo quando o odiava. E agora era evidente: talvez ainda houvesse ódio, de alguma forma, mas havia também... desejo. Cada toque, cada reação do professor indicava isso. E a reação extremada do professor daquela última vez, quando ele lhe fizera aquele discurso sobre ser sádico, aquilo devia ser uma espécie de defesa de Snape.

Por que Snape iria querer se defender dele já era um mistério que Harry não conseguia desvendar. Harry não tinha nenhuma experiência em assuntos afetivos ou sexuais, e a intensificação de suas percepções não resolvia esse problema de todo. Ele tinha a clara intuição de que Snape também o desejava, mas não conseguia explicar por que ele agia de uma forma ou de outra.

Harry riu de si mesmo. O que estava pensando? É claro que Snape iria querer se defender daqueles sentimentos. Havia um bilhão de motivos para isso. Para começar, se ele se envolvesse com um aluno, estaria em encrenca. E que encrenca. Assim... será que isso significava que Snape mentira para afastá-lo?

Sem dúvida, Snape era sádico. Provavelmente não mentira ao contar de seu passado Death Eater. Mas a culpa, a culpa estava também presente para Snape, o tempo todo. Senão, porque ele se submeteria a ser espião, a sofrer nas mãos de Voldemort? Por ódio a Voldemort, ou por um estranho e relutante amor às forças da Luz? Talvez também isso, mas a noção de dívida e culpa parecia fazer mais sentido, combinar mais com a personalidade de Snape.

Enfim, Harry não entendia ao certo todos os motivos de Snape. Mas queria descobrir. E queria ficar perto dele.

~*~*~

Era hora do almoço, e Harry decidiu voltar ao castelo. Não queria almoçar com todos no Grande Salão, mas queria conversar com Hermione. Ao pensar nisso, soube instantaneamente onde ela estava: na Torre de Astronomia. E... ela não estava sozinha.

A mente de Harry não era ainda um Mapa dos Marotos, em que ele pudesse identificar cada pessoa em cada lugar. Era algo que dependia de uma vontade sua, de uma ligação especial com cada pessoa. O fato é que sabia que havia alguém com Hermione, e alguém que não era chegado a ele, Harry. Mas parecia ser alguém de confiança e gostar muito de Hermione.

Era um exercício divertido. A charada não era, agora, difícil de matar. Provavelmente Hermione estava com Axel.

Não iria até lá. Não queria interrompê-los. Conversaria com Hermione depois das aulas.

~*~*~

- Harry! Mas isto é maravilhoso! - exclamou Hermione, quando Harry terminou de lhe contar todo o episódio da mandala, omitindo as referências a Snape. - Esse ritual Navajo, eu nunca pensei que pudesse ter um efeito tão forte.

- Ninguém pensou. O próprio Kai disse que nunca viu uma reação tão forte. Não tem jeito, tudo comigo sempre é diferente...

- Então você acha que Dumbledore tem esse mesmo poder que você adquiriu? Uma ligação íntima com Hogwarts?

- Tenho certeza. Eu sinto as energias das pessoas. E sinto que Dumbledore também sente.

- Você não vai contar a ele que adquiriu esse poder?

- Ele já sabe, Hermione. Ele já sabe.

~*~*~

Snape o recebeu em seu laboratório na terça-feira, conforme combinado. E foi logo perguntando:

-Refletiu a respeito do que lhe disse um mês atrás? Qual é a sua decisão?

- Aceito as suas condições. Gostaria de contribuir para essa poção.

- Muito bem, sr. Potter. Então se prepare. Vai ter de ouvir um longo relato de tudo o que fiz nesses dias em que o senhor não esteve por aqui.

~*~*~

Voltaram a trabalhar juntos, quase sempre em silêncio. Harry cuidava ao máximo para não se aproximar demais do professor. Com o tempo de convívio entre ambos e com a sua nova percepção de tudo o que o cercava, cada vez mais Harry parecia ler os pensamentos de Snape, saber, sempre, que ingrediente ou que instrumento ele queria que lhe passasse, ou se já era hora de abaixar ou aumentar o fogo. Em mais algumas semanas, estavam trabalhando juntos em perfeita sincronia.

Não que fosse fácil para Harry resistir à proximidade com o objeto de seus desejos. Às vezes ele se distraía, e ficava observando o professor, seus gestos hábeis, seu jeito concentrado. E às vezes ele pegava Snape observando-o com seus olhos penetrantes. Quando os olhares se encontravam, ah, era o momento mais difícil de todos. Harry nem tentava ocultar o quanto aquilo mexia com ele.

A poção estava em fase final. Era o momento de se efetuar testes, e fazer as eventuais correções necessárias. Snape nunca informara a Harry em quem estava testando a poção. A cada aula, ele chegava e lhe dizia - "é preciso diminuirmos a quantidade de gipsita, e aumentarmos a quantidade de tabaco". Ou: "ainda não chegamos ao ponto ideal. Talvez haja algum elemento entrando em conflito com o outro. Vamos fazer várias amostras com combinações diferentes." E Harry se perguntava quem estaria consumindo todas aquelas amostras.

~*~*~

Os novos poderes de Harry lhe facilitavam o estudo, também. Hermione notou o quanto ele parecia mais atento a tudo o que se passava. Era como se o castelo lhe passasse cola o tempo todo! Ele captava, nas paredes, no ar, na umidade que impregnava o castelo, as respostas às perguntas que lhe faziam. Era muito estranho, mas Harry não iria se queixar disso!

Naquele sábado, Harry terminou suas lições ainda à tarde e, para relaxar, resolveu pegar sua vassoura e voar pelos arredores do castelo.

O vento era frio e cortante, mas Harry não se importava. Começou a fazer loopings, curvas arriscadas, mergulhos vertiginosos. Chegou quase a entrar na Floresta Proibida, mas recuou. Margeou o lago. Andou por entre as torres do castelo, ziguezagueando. Ao contornar a Torre de Astronomia, avistou duas outras vassouras no campo de Quadribol. Curioso, resolveu aproximar-se um pouco mais.

Os dois voadores disputavam uma bola. Pela velocidade, não era o Snitch. Devia ser apenas um reles Quaffle. Não conseguia avistá-lo ainda, mas... sentia. Sentia claramente que um dos voadores era Snape. Só quando chegou a poucos metros pode discernir quem era o outro voador: Montague. O garoto que deveria estar agora no sétimo ano, mas que fora enviado em uma tétrica viagem ninguém sabe até onde pelos canos de esgoto por Fred e George, e sofrera sérios danos cerebrais. Às vezes Harry o encontrava pelos corredores, com um ar meio perdido. Diziam que Snape e Madame Pomfrey estavam fazendo o possível para que ele se recuperasse e pudesse voltar a cursar as aulas ainda no segundo semestre - no sexto ano, onde ele parara. Ou seja, no mesmo ano de Harry.

Vendo-o aproximar-se, Snape e Montague pararam de disputar o Quaffle e olharam em sua direção.

- Lembra-se de Potter, Montague?

- Harry Potter! Quem não se lembra de Harry Potter?

Harry fez uma careta.

- Olá, Montague. Parece que você está em forma!

- Quer me testar? Professor, o senhor poderia jogar o Snitch para eu disputar com Potter?

Snape olhou para Harry, que lhe fez um gesto afirmativo com a cabeça. Então Snape tirou um Snitch do bolso e o lançou. Harry se lançou atrás dele e Montague partiu como um rojão ao seu encalce. Snape desceu para se sentar nas arquibancadas.

O ex-capitão de Slytherin e o atual capitão de Gryffindor duelaram por mais de vinte minutos até que Montague, tentando deslocá-lo com um movimento de corpo, perdeu o equilíbrio, e deu vantagem a Harry, que aproveitou para pegar o Snitch.

Mas Montague não parecia decepcionado. Ao contrário.

- Ah, mas eu quase peguei você. É que eu nunca fui Seeker. Agora, o que eu queria mesmo era ver você disputando o Quaffle comigo, como Chaser. - Montague se voltou para Snape. - Harry Potter não podia vir treinar sempre com a gente?

Harry se comoveu. Aquele garoto ingênuo, entusiasmado não era o Montague que conhecera - um verdadeiro buldogue. Sentia-se culpado. Talvez se ele, Ron e Hermione tivessem contado logo o que acontecera a Montague, tivessem podido curá-lo? Como saber? Eles haviam sido egoístas demais para pensar no colega. Eles nunca haviam pensado nele como um colega? Era um Slytherin. E Slytherin não eram colegas. Agora Harry pensava diferente.

Durante o longo silêncio em que esses pensamentos passavam pela cabeça de Harry, Snape o observava.

- Potter tem muitos compromissos. Não sei se...

- Claro! Eu venho sim. Isto é, se o professor concorda - apressou-se em dizer Harry.

No olhar que Snape lhe lançou naquela hora, havia algo inédito: gratidão.

~*~*~

- Mas eu vi você treinando com o ex-capitão de Slytherin! - gritou Ron.

- E daí? - Harry deu de ombros. - Ele não está jogando atualmente.

- Mas dizem que voltará a jogar contra nós assim que se recuperar.

- Ron, esse cara perdeu o ano por causa de uma brincadeira dos seus irmãos! Ele perdeu o ano e a memória. Ele perdeu praticamente tudo! Snape me contou...

- Aha! "Snape me contou". Você agora é só Snape isso, Snape aquilo. Snape ainda é um canalha seboso, um...

- Ron, nós não estamos discutindo a respeito de Snape agora.

- Mas o problema é exatamente esse, você agora só se dá com os Slytherins. Snape, Draco...

- O que tem Draco?

- Ele não larga do seu pé, mas você nunca o enfrenta. Fica protegendo-o.

- Protegendo Draco? Você está louco. Eu quero falar é de Montague, Ron. Snape e Pomfrey praticamente tiveram de ensiná-lo a falar e a andar de novo. Agora ele já está praticamente normal, mas não é a mesma pessoa!

- Ótimo, porque ele era um bosta. Então meus irmãos fizeram um grande favor à humanidade - disse Ron, batendo o pé.

Harry arregalou os olhos.

- Ron, você sabe o que está dizendo? Você sabe que quem pensa assim são os seguidores de Voldemort? Os Death Eaters?

- Ah, é mesmo? Não sei não. Me conte, você, já que agora só anda com esse tipo de gente.

- Ah, vá se danar.

~*~*~

- Hermione, você e Axel... estão namorando? - perguntou Harry, um tanto constrangido.

Hermione abriu um sorriso deslumbrante. Harry nunca a vira tão bonita.

- Psiu. Estamos sim, mas é segredo. A gente não quer que as pessoas fiquem pegando no nosso pé. Sabe como é, ele é de Slytherin e eu sou de Gryffindor.

- Oh, Hermione, eu fico tão feliz com isso! Axel é um cara legal. E essa rixa contra Slytherin já me encheu o saco. Era isso o que eu queria conversar com você. Ron brigou comigo de novo. Ele fica dizendo que eu agora só falo com Slytherins.

- Você?

- É. Sabe como é. Ele me viu treinando Quadribol com Montague.

- Mesmo, Harry? Isso é muito bonito de sua parte. Ajudar na recuperação de Montague, eu quero dizer.

- Só que Ron não entende isso.

- Ron é produto desse sistema podre. Está tudo errado, Harry. Não devia haver divisão de casas, isso só acirra os ânimos entre a gente. Nós devíamos nos unir contra Voldemort, e não nos dividirmos internamente. E os Slytherins são marginalizados. Nem todo mundo de Slytherin apóia Voldemort. Aliás, acho que é só uma minoria que tem alguma ligação com os Death Eaters. Mas quando nós os marginalizamos, nós os empurramos para os Death Eaters!

- É verdade, Hermione. Está tudo errado.

~*~*~

Naquela noite, pensando a respeito de Montague e Ron, Harry tomou uma decisão muito séria: no fim de semana seguinte, iria procurar Fred e George em seu apartamento em Hogsmeade.

~*~*~

Os gêmeos fizeram a maior festa para Harry, e o levaram até seu laboratório para mostrar suas novas invenções.

- Veja, Harry, esta é a Mistura Fomentadora de Jargões Pós-Modernistas. O cara come um pouco dessa gororoba e começa a falar como um acadêmico, ou como um crítico de arte, ou como qualquer outro pretensioso de plantão. É muito útil quando você quer impressionar esses idiotas que não dão valor a você se você não usa o jargão deles - explicou George.

Harry olhava para tudo, fascinado. Tomavam Firewhisky, e os copos nunca se esvaziavam. Em seu terceiro copo, Harry, meio alto, reuniu coragem para dizer:

- Meninos, eu tenho uma coisa chata para dizer para vocês.

- Você vai se casar? - brincou Fred.

- Não, gente. É sério. É sobre Montague.

- Aquele buldogue que a gente mandou passear nos canos? O que tem ele? - perguntou Fred.

- Vocês iriam ficar muito chateados se eu contasse... a Snape que foram vocês e o que vocês fizeram?

- Para quê você iria fazer isso? - indagou George.

- Montague ainda está esquisito. Talvez haja algum modo de ajudar na recuperação dele.

- Argh. Harry o anjo da guarda - Fred fez cara de desprezo. - Esse cara é um bosta! Porque quer ajudá-lo?

- Escutem, isso de vocês ficarem me criticando também é chato, sabiam?

- Tudo bem, Harrizinho. A gente ama você e não quer brigar - Fred deu-lhe um beijo no rosto. - Ele pode contar, não é, George?

- A gente nem está mais em Hogwarts, eles não vão poder fazer nada. E se Snape resolver vir tirar satisfações, rá rá. Nós temos nosso trunfo contra ele - declarou George, empinando o queixo.

- Trunfo? - perguntou Harry.

- Contamos a ele ou não contamos? - perguntou George a Fred.

- Contamos, porque, o melhor que temos a fazer, é já mandar o recado a Snape para que ele saiba de imediato que nem adianta tentar nada. Não é?

- Não estou entendendo nada - disse Harry, preocupado.

- É o seguinte, Harrizinho - disse Fred. - O digníssimo professor Snape freqüenta a casa de um célebre prostituto ao lado de nossa casa.

- O quê?

- É isso mesmo - disse George. - Ele vem aqui toda sexta-feira à noite. Fred e eu estávamos testando o nosso Speculor, um aparelho que estamos aperfeiçoando e que, esperamos, nos possibilitará ver através de paredes, e descobrimos coisas interessantes. Descobrimos que ele tem encantos pesados ao redor de uma sala nos fundos, mas a sala de espera, na frente, é desprotegida. Então nós conseguimos ver as pessoas esperando para serem atendidas. Com isso, já temos verdadeiros dossiês sobre muita gente importante!

- E vocês tem certeza de que é Snape?

- Aqueles cabelos oleosos e aquele nariz quilométrico são inconfundíveis, Harrizinho. E é infalível: toda sexta-feira à noite ele vem. Sempre na mesma hora: dez da noite. E sai uma hora depois. Ele aparata direto na sala de espera. Provavelmente certo de que ninguém o está vendo! Ah, e de vez em quando ele traz um frasco para o cara. Fred e eu achamos que o cara deve precisar de um afrodisíaco para transar com Snape - disse George, caindo na gargalhada junto com Fred.

~*~*~

Harry saiu do laboratório dos gêmeos meio tonto, e não por causa do Firewhisky. Fingiu que ia voltar a Hogwarts, mas, num louco impulso, voltou para a casa do vizinho dos gêmeos.

Não se importava que os gêmeos o vissem. Eles simplesmente não entenderiam nada. Provavelmente iriam colocá-lo em seus dossiês, mas não tomariam nenhuma atitude de imediato.

Era bastante cedo ainda. Pouco mais de cinco horas da tarde. Talvez o prostituto só trabalhasse à noite.

Tomou coragem e bateu à porta com o pesado puxador de bronze. Não precisou esperar muito. Um homem com cicatrizes no rosto, olhos encavados e cabelos grisalhos abriu-lhe a porta.

- O que... Por Merlin! Você não é Harry Potter?

Harry ergueu os olhos ao céu.

- Sou.

- Muito prazer, meu nome é Pier. Entre! - Pier conduziu-o através da sala de espera até uma vasta suíte, com uma ampla cama de casal. Era uma sala simples, mas bem arrumada, e com vários ambientes. Havia até uma cozinha-sala de jantar. Indicou-lhe uma confortável poltrona. - Sente-se! Eu... não vivo aqui, você sabe. Acabei de chegar. Meu primeiro cliente deve chegar daqui a uma hora. - Ele próprio sentou-se em outra poltrona gêmea. - Por acaso está interessado nos meus... serviços?

- Er... estou.

- Você... teria alguma exigência especial?

- De que tipo?

- Oh - disse Pier, fazendo um gesto vago. - Alguns clientes gostam de bondage, sado-masoquismo, spanking, fetiches, sabe como é. Outros querem que eu assuma uma outra personalidade...

Harry teve uma súbita idéia.

- Com a poção polissuco?

- Oh, não, isso é muito raro. Apenas um de meus fregueses me pede para usar essa poção, e ele mesmo me fornece o produto.

Oh, Merlin.

- É mesmo? Que interessante. Ele traz todas as vezes?

- Não, ele me dá um frasco e, quando acaba, ele o repõe. Me deu também umas roupas para eu usar, para ficar igualzinho ao original. - Levantou-se, abriu uma gaveta em uma penteadeira, e retirou um frasco verde, mostrando-o a Harry.

- Como é a pessoa em quem você se transforma quando toma a poção?

- Eu não sei. Meu cliente sempre lança um Feitiço do Esquecimento em mim antes de ir embora. A maioria dos clientes exige isso. Mas é claro que, se você quiser que eu use a poção, você pode escolher a pessoa em quem deseja que eu me transforme.

- É muito caro? - perguntou Harry.

- Se você trouxer a poção, é o mesmo preço normal: vinte galeões por hora.

- E... no final... você me deixaria aplicar um Feitiço do Esquecimento em você?

- Que jeito? - O prostituto deu de ombros.

- Escute... Você acha que o cara que lhe deu essa poção... vai notar se você usar uma dose comigo?

- O quê? Isso não, isso é altamente irregular. Isso não seria ético da minha parte.

- E se eu lhe pagar... quarenta galeões? Por uma sessão de meia hora? - perguntou Harry, incisivo.

- Mas... por que você quer usar uma poção se nem mesmo sabe em que pessoa ela irá me transformar? Isso é muito estranho.

- É, é isso mesmo. Eu sempre imaginei como seria transar com um estranho. Com alguém que eu nunca encontrei antes.

O prostituto fitou-o com profunda estranheza. Por fim, deu de ombros.

- Meu cliente vai ficar danado, mas eu posso dizer que derramei um pouco da poção sem querer...

- Você tem tempo agora? - perguntou Harry, ansioso.

Pier olhou para o relógio de pulso.

- A poção dura uma hora. Você terá de pagar a hora inteira. E temos de começar já. Normalmente eu gosto de ter cinco minutos de intervalo entre um cliente e outro, mas posso fazer uma exceção para Harry Potter!

Harry se perguntou se o homem usaria alguma poção para conseguir ter aquela capacidade de reciclagem.

-Não preciso de uma hora inteira. Você vai ter bastante tempo para descansar.

Pier deu de ombros outra vez.

- O cliente é quem manda!

Abriu novamente a gaveta da penteadeira e retirou um copo. Pegou o frasco, abriu-o e serviu a dose certa. De um só gole, tomou a poção.

Lentamente, seus cabelos grisalhos começaram a se tornar negros. Seu tamanho foi se reduzindo consideravelmente. A pele foi ficando mais rosada, lisa, macia. Ele estava agora exatamente do tamanho de Harry, e... uma cicatriz começava a se formar em sua testa. Cabelos revoltos cobriam-lhe a cabeça.

Harry arregalou os olhos. Era como se estivesse diante de um espelho, só que sem os óculos e com roupas diferentes.

 

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Ptyx, Julho/2004