CAPÍTULO 2 - A Dama Verde

 

Durante várias noites de quarta-feira eles trabalharam juntos para decifrar a misteriosa escrita. Snape pedia a Harry que lesse trechos de fala em Parseltongue, e transcrevia longas seqüências de falas, como "sssesssii haaassh isss", que queria dizer "meu nome é Ceci", na ordem invertida característica da língua (literalmente, "Ceci nome meu"). Snape tentava traduzir isso em fonemas (nesse caso, algo como "sesi hazh is") e efetuava contagens de todos os fonemas para verificar quais eram os mais freqüentes. A partir dessas contagens, tentava atribuir os fonemas aos símbolos grafados no Manuscrito. Começou verificando qual era o fonema mais constante nas transcrições e atribuiu-o ao símbolo que mais aparecia no Manuscrito. E assim eles prosseguiam, sempre testando para ver se encontravam combinações de sons que fizessem sentido. Ceci observava tudo com interesse, às vezes fazendo algum comentário e trocando idéias com Harry, sob o olhar enciumado de Snape. O trabalho avançava lentamente. Não conversavam sobre nada além do trabalho e, mesmo a respeito dele, apenas o mínimo necessário. A princípio, estavam sempre perdendo a paciência um com o outro e iniciando uma discussão, mas isso foi ficando cada vez mais raro, e uma convivência distante mas quase respeitosa se estabeleceu entre eles.

Em uma daquelas noites, Harry desceu às masmorras e encontrou Snape na sala de poções, mexendo o caldeirão.

- Que poção é essa?

- Esta é... a Dama Verde.

- Er... Para que serve?

- Continua não abrindo seus livros, ahn? - Snape fuzilou-o com um olhar de puro desprezo. - Os Muggles o chamariam de "absinto". Mas o que eu faço é diferente. Não é só uma mistura de elementos.

- O absinto não é muito amargo?

- Obviamente, precisa ser aromatizado e adocicado com outras ervas. A principal delas é a graciosa Melissa, que o grande Paracelsus tinha em tão alta consideração que incluiu como principal ingrediente na preparação de seu Ens Melissa Vitae. Paracelsus esperava que o Ens Melissa Vitae fosse um elixir da vida e a cura para todas as doenças, mas, ao menos em suas mãos, isso nunca veio a acontecer.

Harry o observava, intrigado. Snape falava e agia de modo estranho, nada característico.

- E que outras ervas?

- Menta, anis, funcho e hissopo, todas ervas sagradas, segundo as Escrituras Sagradas Hebraicas... Não se deve desprezar de todo a cultura Muggle, Potter - comentou Snape. - E também a sagrada manjerona, que torna o homem casto e passional.

- Casto e passional? Isso não é uma antítese?

Snape o encarou com surpresa. "Antítese" não era uma palavra que esperasse ouvir da boca de Harry.

- De forma alguma. Pense nos santos católicos, por exemplo - Snape virou-se para pegar um outro ingrediente e misturá-lo à poção. - Estes talos verdes e tenros são da mística angélica. Como a própria Artemisia absinthium, é uma planta de Diana, e transmite a pureza e a lucidez, com um toque de loucura, da Lua.

- Essa Diana é uma deusa grega, não?

- É o nome romano de Ártemis, a deusa grega da caça. Mas, para nós, ela é a própria Lua, e as forças da natureza - Snape virou-se novamente e pegou outro ingrediente. - E, por fim, este é o ditamno de Creta, do qual os sábios do Oriente dizem que possui a flor mais magicamente poderosa de todas as flores de todos os jardins do mundo. É como se o criador da Dama Verde tivesse desejado combinar as ervas mais sagradas para purificar, fortificar e perfumar a alma humana.

Cada vez mais intrigado, Harry o fitava, quase como se hipnotizado.

- Não está me reconhecendo? Sou eu mesmo, não é alguém tentando passar pelo seu *repulsivo* professor com Poção Polissuco. Provavelmente é a influência dos vapores da poção. Não havia reparado, mas estou aqui há bastante tempo... A Dama Verde é delicada, sutil, mas eu a sinto correndo pelas minhas veias, inflamando meus sentidos.

- Naquele seu discurso, no meu primeiro dia de aula de Poções, o senhor também falava assim.

- Às vezes, em ocasiões especiais, a Dama Verde me ajuda a superar as tensões, a me sentir mais... confiante. Pensa que foi fácil para mim enfrentar uma primeira aula com o filho de James Potter? Com o Menino Que Sobreviveu, nossa nova celebridade? - Snape realmente não era ele mesmo, pensou Harry. Se estivesse normal, jamais lhe confessaria aquilo. - A Dama Verde torna a respiração mais livre, o coração mais ardente, e alma e a mente mais capazes de executar tarefas árduas. Tudo que nos cerca ganha um caráter sagrado, assim como cada gesto que executamos.

Snape parecia flutuar, dançar nos ares... Ou será que Harry também já estava sendo afetado pelos vapores da poção? Snape pegou uma garrafa de cristal translúcido com um líquido verde e mostrou a Harry.

- Quer experimentar? - perguntou.

Harry arregalou os olhos. Não, ele não podia aceitar, era muito perigoso. Não confiava no patife seboso. Mas, por alguma razão, não conseguia abrir a boca para recusar. Viu Snape pegar dois copos de coquetel, materializar um cubo de gelo em cada um e servir a Dama Verde. Ao tocar no gelo, a bebida borbulhava e adquiria uma aparência leitosa. Snape estendeu um copo a Harry.

- Tome devagar. *Devagar*, eu disse.

Harry deu um gole. A Dama Verde descia incandescente pelo esôfago, e parecia já incendiar as veias.

- Uau.

- Só vai fazer pleno efeito daqui a uma meia hora. Não se assuste. A Dama Verde vai nos levar para onde bem entender, mas eu já conheço bem seus caminhos. E não vou deixá-lo ir longe demais. - Molhou os lábios em seu copo, saboreando a bebida e sentindo-lhe a textura.

Cada vez mais, a Dama Verde se fazia presente, tornando-os ao mesmo tempo mais lúcidos e incoerentes... Era como se os seus sentidos se estendessem muito além da realidade visível. A Dama Verde conduzia sua consciência até a essência do tempo, adentrando os sinuosos labirintos da loucura consciente. A conversa derivava para algo semelhante a um cadavre exquis - aquele jogo de escrita automática dos surrealistas.

- Todos os dias nós nos encontramos em corredores sombrios que refletem nossos vultos, estátuas de deuses antigos, imagens dos nossos carcereiros que ignoramos. Humanidade escrava, autômatos de relojoeiro, títeres nas mãos dos arcontes, pobres vítimas de uma conspiração que se estende até a aurora dos tempos, obedecemos como se tivéssemos sido criados para isso. Nossas faces esmagadas pelo tacão impiedoso dos tiranos, meras sombras na caverna platônica, simulacros de seres livres, fantasmas. E, no entanto, em você brilha a centelha da liberdade. Precisamos de você, garoto imprevisível que caminha pelos corredores destas catacumbas inóspitas.

- A tentação da vertigem, a atração do abismo...

- Não. Um conhecimento que será seu no devido tempo.

- "E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará." Quem são eles, para esconderem de mim esse conhecimento? - Harry se lembrava de todas as vezes em que Dumbledore lhe dissera que "ainda não é o momento de saber".

- Talvez eles sejam você amanhã.

- Acha mesmo que eu transformaria magos em marionetes, decidindo destinos?

- O destino é verde - murmurou Snape, que via as paredes, a mesa, as estantes repletas de volumes ancestrais, tudo adquirir uma aura esverdeada.

- E gira - acrescentou Harry. - É um relógio de mil ponteiros alucinados, girando, girando, girando. E você é um fantasma alienígena, em uma dimensão que não é a sua.

- Às vezes você quer me estraçalhar, eu sei. Quer chutar as paredes, socá-las até esfolar os dedos. Mas um outro mundo, haverá um outro mundo? Talvez após a grande conflagração universal, ou talvez em um tempo que não é tempo, que se desdobra em espaço. Digo que talvez eles sejam você amanhã porque tenho a sensação de já ter visto tudo isso acontecer. Quando se está em todos os tempos, nenhum tempo é seu tempo. Nada existe de verdade, salvo o fluxo contínuo que arrasta cada probabilidade de cada evento em cada época e lugar. Dumbledore já foi você e você será Dumbledore. E eu estarei aqui para servi-lo, como hoje sirvo a ele.

- Não! Nós vamos encontrar o Graal e sair fora do tempo.

- Ah! Mas não será isso que também o Dark Lord estará dizendo nesse momento?

- A tentação da vertigem, a atração do abismo?

- O Graal é solitário e falido.

- A Dama Verde me prometia a lucidez, mas estou mais perdido do que nunca - disse Harry, como que retornando de uma fase mais aguda do transe.

Snape deu um sorriso irônico.

- Mas, por um instante, você a viu, não viu? Com a máxima clareza?

- Vi, sim. Vi o quanto tudo isso é sem sentido. Vi o quanto eu posso me sentir isolado de tudo e de todos. Ilusoriamente acima de tudo e de todos. Vi que não há diferença entre Voldemort, Dumbledore e eu.

Nesse instante, Severus segurou a mão de Harry. O choque da energia mágica que fluía naquele simples toque era estonteante. Harry arregalou os olhos. Não estava mais isolado, nem acima de nada e ninguém. A ilusão de ser alguém especial se mostrava em toda a sua estupidez. Como se, diante de um boggart, ele houvesse de repente gritado: Riddikulus! Ah, era tão simples. Era como se tudo entrasse nos eixos. O Leão e a Serpente se fundiam, e destruíam o destruidor. Isso era sagrado. Mais do que tudo.

Aquilo era bem diferente da Legilimência. Era um outro tipo de fusão de mentes, de almas, talvez.

- Se destruirmos o destruidor, o mecanismo, a máquina de tortura, não precisaremos exercer todo esse poder e controle. Mas para isso, vamos ter de ser muito, muito fortes. Vamos ter de controlar nosso próprio poder - disse Harry, com os olhos brilhando insanamente.

- Cuidado com a Dama Verde. Às vezes ela pode ser como o Espelho de Ojesed e mostrar os nossos desejos mais profundos.

- Desejos não são *só* desejos. Eles movem o mundo.

Aos poucos, no entanto, eles saíam dos braços da Dama Verde.

- Mas também podem nos iludir e, assim, nos aprisionar. Primeiro você se viu como um ser especial. Depois percebeu o quanto isso era ilusório. Agora você vê o Leão e a Serpente, a união de dois seres, como algo especial.

- Você está querendo dizer que vamos precisar da força de outros magos? De outros seres? Talvez a Ordem da Fênix, mas...

- Oh, não há dúvida. A Ordem da Fênix é o melhor que conseguimos até agora. No entanto, assim como é insano depositar o destino do mundo nas mãos de um indivíduo, ou de um casal sagrado, também é insano confiar inabalavelmente na mística de um grupo.

- Como pode viver assim? Há alguma coisa em que você acredite? Há alguém em quem confie?

- Nunca da mesma forma que você, tolo Gryffindor. Nunca.

Snape o fitou com estranhamento. O que estava fazendo? Revelando seus pensamentos mais secretos a Harry Potter? Oh, Merlin.

- Potter, vá para o seu quarto. Já é tarde. Perdemos uma noite de trabalho.

- Isso não foi culpa minha!

- Saia já daqui.

 

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