10 - O Herói, o Vilão e o Traidor
Aquilo era um acinte. Ron, Hermione, Ginny e os gêmeos haviam todos recebidos tarefas a desempenhar - e tarefas arriscadas. Snape prepararia a poção em suas masmorras e, quando pronta, a entregaria à Clique em Grimmauld Place. Só ele, Harry Potter, não podia fazer nada. Por causa do morcegão. Harry andava de um lado para o outro pela casa, e tentava refletir. A profecia afirmava que quem teria de enfrentar Voldemort seria ele, Harry. Talvez a profecia não fosse verdadeira, mas Harry não queria arriscar. O preço a pagar era alto demais: para começar, a destruição de Hogwarts e a morte de quem estivesse lá para defender o castelo. E Voldemort não pararia aí, agora que tinha nas mãos uma arma tão poderosa quanto o Veneficus Trojanus. Os planos do grupo estavam todos traçados; Snape informara que Voldemort iria chamar todos os doze principais Comensais da Morte (treze, incluindo Snape) para um esconderijo secreto três dias antes da invasão a Hogwarts - ou seja, dali a dois dias. Snape prenderia em um bolso interno de suas vestes o alfinete que permitiria aos gêmeos localizar o esconderijo dos Comensais da Morte no Mapa da Clique. Ron iria ao local verificar a situação da casa, inclusive de onde vinha a água que a abastecia, e voltaria a Grimmauld Place para prestar seu informe. Hermione havia aprendido a programar uma chave de portal, para que ela e Ginny também pudessem participar do ataque (Ron e os gêmeos já possuíam autorização para aparatar, mas Hermione iria completar 17 anos na semana seguinte, e Ginny só no ano seguinte). Assim, todos os cinco iriam de chave de portal para o local, "batizariam" a água com a Poção Mandala B (a versão modificada da Poção Mandala) e esperariam que fizesse efeito sobre os Comensais da Morte. Então, a um sinal de Snape, eles atacariam o local com o arsenal de bombas fabricadas pelos gêmeos. Harry sabia qual era o ponto fraco do plano. Talvez os Comensais da Morte fossem afetados pela poção e desertassem, mas Voldemort não se abalaria. Snape, pensava Harry, também sabia disso - por isso exigira que Harry não participasse da ação. Harry, todavia, estava decidido a se fazer presente. Fingiria, no entanto, estar plenamente resignado ao seu papel de coadjuvante inútil. ~* ~* ~ Era madrugada ainda, e Severus Snape andava de um lado para o outro pelo escritório nas masmorras. - Severus, que bicho mordeu você? Não pára quieto nem um minuto! - O quê? Ora, Phineas, vá brincar com Albus. - Ele ainda não acordou. Por que está tão nervoso? - Não estou nervoso. - Se você quer saber, o menino também está uma pilha de nervos. Snape parou e encarou Phineas fixamente. - Que menino? - Não se faça de desentendido. O mesmo que você me manda espionar a toda hora. - Eu não mando você espionar ninguém. Phineas deu um longo suspiro. Snape fez um gesto exasperado. - Infelizmente, Potter é importante para a Ordem. E você sabe como ele é irresponsavelmente Gryffindor. - Ah, sim, o seu interesse nele é em nome da causa - disse Phineas, em tom cáustico. - Conta outra, Severus. Snape fuzilou-o com os olhos. - Fui lá ainda há pouco, Severus. Ele está dormindo como um anjo. O coração de Snape bateu mais forte. Eu não vou lá. Se eu fosse, iria perder a cabeça. Não conseguiria me controlar, poria tudo a perder. Talvez até o maltratasse, massacrando-o com aquelas perguntas que me torturam... "Você sente falta de mim? Alguém tocou em você além de mim? Diga que você é meu, só meu..." Não tenho direito de cobrar isso dele. O anel me assegura que, ao menos em intenção, ele me é fiel. É melhor que eu não vá. Assim se eu morrer, Harry não sofrerá tanto agora, pois estamos separados. Uma reconciliação e depois a perda é um golpe muito cruel. Melhor assim. E mais. Se eu for, talvez não tenha coragem de fazer nada do que preciso fazer. - Não perguntei nada a você, Phineas. Não estou interessado. ~* ~* ~ Naquela mesma tarde, em Grimmauld Place, o local do esconderijo dos Comensais da Morte apareceu no Mapa da Clique: Walpurgis. Ron aparatou imediatamente lá. Quinze minutos depois, voltou informando que o esconderijo era em um chalé de apenas um andar, que eles poderiam se esconder atrás das árvores que cercavam a casa e que a água utilizada lá vinha de uma fonte particular, situada dentro do terreno do esconderijo, e era armazenada em um reservatório a cerca de quinhentos metros da casa. Todos se agitaram, preparando-se para partir em sua missão. Harry fingira estar conformado em ficar. Dera-lhes conselhos, abraços e apertos de mão de despedida. Desejara-lhes sorte. Assim que os cinco partiram com a chave de portal, Harry foi para o quarto, vestiu a Capa da Invisibilidade, e aparatou no obscuro sítio de Walpurgis. Viu-se diante de um chalé de pedra, de um só andar, com uma ampla janela na frente, completamente fechada. Andando oculto por entre as árvores, não demorou muito a encontrar os amigos, e ficou junto às árvores em um local a uma distância segura, mas de onde podia vê-los muito bem. Viu quando Fred e George partiram rumo ao reservatório de água carregando os dois garrafões de poção que haviam levado; viu que Hermione, Ron e Ginny haviam permanecido junto ao chalé, escondidos atrás de um grupo cerrado de árvores - Hermione acompanhando tudo pelo Mapa, Ginny e Ron vigiando atentamente; viu os gêmeos retornarem a salvo e se juntarem aos demais. Quinze minutos depois, Harry começou a ouvir gritos vindos da casa. Parecia estar havendo uma discussão violenta. Entretanto, aparentemente Snape não dera nenhum sinal, porque os cinco não se moveram, e logo tudo se acalmou. Harry estava ficando nervoso. Ficar espreitando não era o seu forte. Então ele se lembrou da canção do "Caminho da Caça" que Kai lhe ensinara, e começou a cantar para si mesmo:
A canção o acalmou, e fez com que conseguisse agüentar a espera. Ele cantou outra estrofe.
Meia hora mais tarde, uma briga ainda mais violenta pareceu irromper. De novo, em poucos minutos tudo se aquietou. O sol estava se pondo, e tudo estava ficando escuro e frio. Harry começou a perder a paciência. E se Voldemort tivesse descoberto que Snape o estava traindo e o estivesse torturando? Ele repetiu as últimas palavras da canção Navajo:
e soube que era hora de entrar em ação. Resolveu se aproximar do local para ver o que acontecia. Não querendo correr o risco de seus amigos perceberem o que ele estava fazendo, contornou a casa, e tentou espiar pelas janelas dos fundos. Impossível. Todas trancadas e cobertas com cortinas. Não havia jeito. Olhou para a porta dos fundos com decisão. - Alohomora! ~* ~* ~ A cena com que se deparou não fazia nenhum sentido: cinco pessoas aparentemente mortas caídas pelo chão, os corpos espalhados pela sala, e Voldemort e Snape sentados a uma mesa, conversando calmamente. Nagini circulando sensualmente ao redor do corpo de Voldemort. Assim que Harry entrou, coberto pela Capa de Invisibilidade, os dois voltaram o rosto para ele de imediato. Voldemort sorriu. - Harry Potter. Sente-se. Estávamos esperando você para a festa. Snape levantou-se, aparentemente assustado. Harry livrou-se da capa e sacou da varinha. - Prepare-se para morrer, Voldemort. - Não, Harry! - gritou Snape, lançando-se em sua direção. Harry recuou, espantado. - Você está do lado dele agora, Severus? Voldemort deu uma gargalhada. - Não seja tolo, menino. Sente aí e vamos conversar - disse o mago mais maléfico do universo. - Harry, se você o matar, você morrerá também - disse Snape, em desespero. - O quê? - É verdade - falou Voldemort. - Nós estamos ligados indissoluvelmente. Eu só descobri isso agora. Não posso matar você, se não quiser morrer. - Não confio em você. Pode ser que você não queira mais me matar, mas irá matar meus amigos. Prefiro morrer a ver isso acontecer. Ava... Snape se postou na frente de Voldemort. Harry estancou. - Seu... traidor... saia daí! Nesse momento, um rato pulou sobre o corpo de Harry, e o susto fez com que ele se distraísse. Aproveitando-se do estado de perplexidade do garoto, Snape avançou e tirou a varinha de sua mão. O rato saiu correndo por baixo da porta da cabana. Snape recuou, e respirou fundo. - Não é irônico, isso tudo? - disse Voldemort, com um sorriso torto. - Ninguém respeita Peter, no entanto, ele sempre consegue se safar. Salvou Potter, anulando o débito de vida que tinha com ele, e salvou a mim, fazendo com que eu fique em dívida com ele. Quanto a você, Severus, traiu-me esse tempo todo, e agora, por ser um traidor, você me salva. - O que está acontecendo aqui? - perguntou Harry, psicologicamente esgotado. - A poção funcionou maravilhosamente bem - relatou Snape. - Os primeiros Comensais da Morte a perderem a marca e se rebelarem estão aí no chão. Foram mortos pelos outros. Mas, no fim, os outros também foram afetados, e fugiram aparatando para longe daqui. Pettigrew havia desaparecido, e pensei que ele fosse um dos que haviam fugido. Mas, como acabamos de ver, ele recorreu a um outro meio de se esconder. Eu, que não tomei líquido algum, e o Lorde das Trevas, que não tem como fugir de si mesmo, ficamos aqui. Harry e Voldemort se encararam por um longo tempo. - E você? Não foi afetado? - perguntou Harry a Voldemort. - Oh sim, eu fui. Você acha que eu estaria conversando com você aqui, se não tivesse sido afetado? E que Severus estaria vivo para contar a história? - Voldemort bufou. - Sabe o que aconteceu comigo, meu caro inimigo? Eu descobri o amor. - Ele dizia a palavra com um profundo desprezo. - Aquele maldito sangue que usei para reconstruir meu corpo, e que saiu das suas veias, estava carregado com esse tal de amor. - Deu uma risada quase histérica. - É por isso que eu fui afetado. Essa poção que o meu devotado Severus criou me fez perceber o que eu, até então, sabiamente, havia conseguido ignorar. Percebo agora que essa magia muito antiga que sua mãe usou sobre você me ligou para sempre a você. Se me matar, você morre, e se eu o matar, eu morro. Era isso o que dizia aquela profecia estúpida, que, é claro, todos entenderam errado. - E o que você vai fazer agora? - perguntou Harry. - Vou ter de fugir, isto é óbvio. Logo, os seus amigos vão cansar de esperar e irão atacar. Severus já concordou em não tentar me impedir, e você ficou sem a sua varinha. Diante desse nosso vínculo indissolúvel, creio que vou ter de desistir de meus planos de dominar o mundo. Talvez eu me contente em alcançar a imortalidade. Vou me dedicar a pesquisar a maldita pedra do filósofo, ou a encontrar a fonte da imortalidade... Qualquer coisa assim. - Você confia nele? - perguntou Harry a Snape, quase em desespero. - Pense, Harry. Ele não pode fazer nada. - Se eu me suicidar, ele morre - disse Harry, finalmente entendendo a situação. Snape cerrou os punhos. - Não ouse! - murmurou, por entre os dentes cerrados. - E vice-versa, meu caro. Se eu me matar, adeus Harry Potter. É por isso que o seu Severus está tão preocupado comigo. É o amor... Por você, é claro. Não por mim - concluiu Voldemort, em tom cínico. Acariciou o corpo de Nagini languidamente. - Mas não é verdade que ninguém me ame, como diz o velho maluco que vocês tomam como mestre. Nagini, por exemplo, me ama muito. Barty Jr. me amou como ninguém jamais amou nenhum de vocês. Ele deu a sua vida por mim. Harry não parecia muito impressionado. - Ah, é verdade, a sua mãe fez o mesmo por você, Potter. Todos louvam o sacrifício dela como um gesto de amor. Mas o que Barty Jr. fez por mim também é amor. E Peter? Peter deu sua mão por mim. E Bellatrix? Espero que ela esteja viva, ainda... O amor de Bellatrix é daqueles que não medem sacrifícios. Entre esses aqui caídos, quase todos me amaram loucamente. - Voldemort se levantou. - Mas estamos perdendo tempo. Os seus amigos desistiram de esperar o sinal de Severus e estão prestes a atacar. Adeus! Eu manterei contato com você, Severus, por meio da marca! Sei que você pode apagá-la se tomar essa maldita poção. Não o faça! E no exato instante em que A Clique e toda a Ordem da Fênix invadiam a casa, Voldemort desapareceu nos ares, sem deixar vestígio. |
Ptyx, Outubro/2004
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