Um Tempero a Mais

 

Agosto de 1999

Severus caminhava orgulhoso com sua jovem esposa grávida pelas ruas de Hogsmeade. Sua farmácia era um sucesso, e ele podia tirar alguns momentos de folga para levar a esposa para escolher o berço para a filha que ia nascer. Haviam aparatado na loja, escolhido um berço sólido e durável - Severus queria ter pelo menos mais um filho - e agora estavam voltando a pé para casa, tranqüilamente.

Ginevra estava mais linda do que nunca, com o rosto corado e as formas arredondadas. Finalmente, os pesadelos da guerra pareciam estar se confinando às lembranças, e Ginevra voltara a sorrir.

O grande paradoxo é que havia sido exatamente a guerra que os havia aproximado.

A voz de Ginevra acordou-o de seus devaneios.

- Severus, falei com mamãe ontem.

- Grande novidade! Ela tem aparecido todos os dias.

Ginevra riu.

- Oh, você sabe como é: primeiro neto.

Severus quase comentou alguma coisa sobre a incompetência dos filhos de Molly em lhe darem netos, mas se lembrou da morte dos gêmeos na guerra e da situação penosa de Bill, e se calou.

Ginevra continuava falando:

- Mamãe quer que almocemos na Toca no domingo.

Severus ia protestar que eles estavam almoçando lá todos os domingos, mas a perigosa aproximação de um vulto vindo na direção oposta o sobressaltou. O desastrado jovem quase esbarrou em Ginevra. Severus puxou-a para si e preparou-se para lançar-se sobre aquele ser irresponsável.

- Harry! - exclamou Ginevra.

- Ginny?

Severus gelou de imediato e, ao mesmo tempo, seu coração bateu mais forte. Confuso, ele ficou sem reação. Por um instante, achou que Harry Potter e sua esposa fossem cair nos braços um do outro e trocar um beijo apaixonado, mas isso não aconteceu. Ginevra apenas segurou Potter pelos ombros, e Potter tocou-lhe os braços.

- Não sabia que você estava de volta!

- Voltei apenas anteontem - disse Potter.

- E não tentou falar comigo? Nem com mamãe?

- Er, eu ia fazer isso hoje.

Potter olhava, fascinado, para a barriga de Ginevra. Parecia visivelmente embaraçado. Severus controlou a vontade de contar vantagem: quem diria que, no fim, eu é que ficaria com a mocinha. Quando Potter, enfim, olhou para Severus, o embaraço do jovem pareceu aumentar. Chegou a corar. Era adorável quando corava assim.

- Snape... - disse ele, com um gesto de cabeça.

- Potter. Espero que nos desculpe, mas temos outros compromissos.

- Severus! - protestou Ginevra. - Faz quase um ano que não vemos Harry. Os compromissos podem esperar um pouco.

- Desculpe. A gente se vê outra hora. Foi muito bom encontrar vocês - disse Potter, abrindo um sorriso simulado e fazendo menção de se afastar.

- Por que não vai lá na Toca no domingo? Severus e eu vamos almoçar lá. Fale com mamãe. Tenho certeza de que ela vai convidá-lo.

- Está bem. Até logo.

Potter se afastou, e Ginevra seguiu o resto todo do caminho sem falar. Severus se sentia como se uma tempestade estivesse se formando sobre sua cabeça. E dentro de sua cabeça, também. Odiava se sentir assim, e odiava Harry Potter por fazê-lo sentir-se assim.

~*~*~

Harry voltara! Ginny não sabia se aquilo a alegrava ou não. De qualquer forma, a volta dele a deixava inquieta, elétrica. Ainda o amava, claro. Não como amava Severus. Com Severus era outra coisa; algo mais sólido e intenso. Harry havia sido uma paixão heróica, de infância. Inesquecível, mas irreal.

Severus era bastante real. E a volta de Harry perturbara Severus nitidamente.

Severus era louco por Harry, Ginny sabia disso muito bem. No fundo, fora a paixão por Harry que os unira.

Após o episódio da morte de Dumbledore, Severus se transformara em um foragido da lei. Apesar disso, fingindo ser um Comensal da Morte, ele continuara passando importantes informações para a Ordem e protegendo Harry.

Harry havia rompido com Ginny para protegê-la, mas nem por isso ela deixara de segui-lo e de tentar ajudá-lo, secretamente, na busca das Horcruxes. Fora nesse momento que ela encontrara Severus, e ele lhe transmitira uma pista fundamental. Ginny passara a ser o contato entre a Ordem e Severus, sem revelar à Ordem que era de Severus que vinham as informações.

Ginny sabia que fora, para Severus, a corda de salvação. Severus era naquele momento um homem solitário e amargo, mas que, contra tudo e contra todos, queria cumprir seu destino e acabar com Voldemort. Severus, o anti-herói, havia encontrado um lugar no coração de Ginny, que outrora era ocupado apenas pelo herói de sua infância.

Quando Harry, enfim, derrotara Voldemort e a guerra acabara, Harry estava exausto e atordoado demais. A pressão sobre ele fora muito forte. Sentindo-se culpado pelas perdas, ele desaparecera do Mundo Mágico. Severus fora preso e julgado, e Ginny depusera em seu favor no julgamento. Severus fora inocentado e abrira uma farmácia em Hogsmeade. Ginny e Severus haviam começado a se encontrar. Três meses depois, eles haviam se casado. A guerra lhes havia ensinado que a vida era curta e que não havia tempo a perder.

Agora, oito meses após o casamento, quando Ginny estava grávida de sete meses, Harry voltava.

E Severus estava visivelmente abalado.

~*~*~

Foi só à noite, na cama, que Ginny teve coragem de falar.

- Severus, você ainda é louco por ele, não é?

- Eu? Você é que era a namoradinha dele. Ele foi o primeiro amor de sua vida. Aquele que você nunca irá esquecer - recitou ele, com amarga ironia.

- Bem, você também teve um primeiro amor inesquecível em sua vida, e eu não acredito que seja apenas uma coincidência que tenha sido exatamente a mãe de Harry.

- Lily está morta. É diferente.

- Mas Harry está vivo. E não me diga que não sente nada por ele.

- Potter não tem nenhum interesse em mim nesse sentido. Nunca teve. Nunca tive nenhuma esperança. Não é como você e ele, que foram namorados. Você, com certeza, esperava casar-se com ele.

- É comigo que você está preocupado, então? - Ginevra deu um sorriso travesso. - Está com ciúmes?

- Não brinque assim comigo.

- Acha que eu o deixaria por ele?

Uma expressão de dor estampou-se no rosto de Severus. Era sempre tão transparente, o seu marido. Como ele conseguira ser espião? Ou talvez ele só lhe fosse transparente assim porque ela o conhecia melhor do que ninguém?

- Espero que você ao menos pense em nossa filha antes de...

Ginny o interrompeu.

- Não seja tolo! Acha mesmo que eu faria algo assim? Confia assim tão pouco em mim?

Severus balançou a cabeça, parecendo desorientado.

- Não sei. Potter sempre teve o dom de virar a minha vida de cabeça para baixo.

- Eu amo você e amo o que construímos juntos. Isso não vai mudar porque Harry voltou.

Ginny passou o braço ao redor da cintura do marido, e ele enterrou a cabeça na curva de seu pescoço.

~*~*~

No dia seguinte, sábado, quando alguém bateu à porta de sua casa e Ginny abriu e viu que era Harry, não se surpreendeu.

- Olá, Harry.

- Ginny. Desculpe não ter avisado, mas é que... eu não sabia se ia ter mesmo coragem de vir.

Ginny sorriu.

- Entre, vamos nos sentar e conversar.

Harry entrou, e Severus se aproximou dos dois.

- Potter.

- Oh, olá, Snape.

Harry estendeu a mão para Severus e este a apertou... talvez com força demais, pela expressão de Harry.

Quando Severus o largou, Harry se virou para Ginny e estendeu-lhe um pacote.

- Eu... eu trouxe um presente para o bebê.

- Obrigada, Harry, não precisava. Mas sente-se! - Ginny indicou-lhe uma poltrona e sentou-se no sofá, com Severus a seu lado. Com cuidado, abriu o pacote. Era um macacão de bebê com a estampa de um caldeirãozinho. - Oh, que gracinha! Veja, Severus!

Tão inesperado quanto o presente foi o leve sorriso que se estampou nos lábios de Severus. Severus voltou-se para Harry, encarando-o daquele jeito intenso, como só Severus sabia encarar.

- Foi muito gentil de sua parte, Potter.

Harry sorriu.

- A minha primeira idéia foi dar um pomo de ouro, você sabe. Mas aí achei que vocês não iriam gostar.

Ginny estremeceu.

- Não quero ver meu bebê correndo atrás de um pomo de ouro, pelo menos nos próximos dez anos - brincou. - Mas Harry, por onde você andou?

- Oh, eu viajei pelo mundo e os sete mares. Estive na Europa, na Ásia e nas ilhas do Pacífico. Estive nas florestas do Brasil e na Groenlândia. Estive em todos os lugares.

Como o tom de Harry fosse de tédio e ele não parecesse ansioso por contar de suas viagens, Ginny deixou que o assunto morresse.

- E você pensa em ficar morando por aqui? Aliás, onde você está morando?

- Estou em Grimmauld Place, acredite ou não.

- Ugh. Você é corajoso - observou Ginny.

- Eu estava pensando em me formar em Hogwarts. Como vocês sabem, eu nunca cursei o sétimo ano.

Ginny parara no quinto. Obtivera seis NOMs! Mas não via por que voltar. Gostava de trabalhar em poções com Severus, e ele era o melhor Mestre em Poções em todo o Mundo Mágico.

- Você tem algum plano em termos de carreira? - insistiu Severus.

- Talvez eu possa ficar em Hogwarts mesmo, dando aulas de Quadribol, ou de Defesa Contra as Artes das Trevas. O primeiro cargo que ficar vago.

Ginny olhou para Severus, feliz porque ele até agora não fizera nenhum comentário desagradável. Não devia estar sendo fácil para ele.

- Nesse caso, você será professor de minha filha - comentou Severus. - Não acha que é muita responsabilidade?

- Tremo só de pensar - respondeu Harry, e Ginny ficou sem saber se ele estava brincando ou não. - Mas tenho certeza de que você irá acompanhar os estudos dela com cuidado e, se eu cometer algum deslize, você não deixará de mencioná-lo a mim. Isso... vai ser bom pra mim.

- Bom?

- É. Eu preciso do desafio. Aprendi isso nesse tempo que passei longe do Mundo Mágico - disse Harry, com os olhos fixos em Severus.

Ginny teve um arrepio. A energia que passara entre Severus e Harry naquele momento era palpável. Talvez Severus tivesse uma chance com Harry, afinal.

A voz de Severus acordou-a de seus devaneios.

- Potter, Ginevra e eu gostaríamos de convidá-lo para ser o padrinho de nossa filha.

Ginny ficou boquiaberta. Eles não haviam conversado sobre aquilo! A idéia não lhe era desagradável, mas... Severus estava arriscando muito.

- Eu? Padrinho? Mas... eu nunca fiz nada por vocês. Eu não mereço... não mereço essa honra.

- Pois então faça por merecer, sr. Potter.

- Oh, por favor, não pode me chamar de Harry, já que... eu vou ser da família, por assim dizer?

Severus fechou os olhos por um instante. O coração de Ginny disparou.

- Claro, Harry. - Severus tentava parecer natural, mas sua voz não estava muito firme. - Desde que me chame também pelo meu primeiro nome.

Harry ainda tinha os olhos fixos em Severus.

- Tudo bem, Severus.

Severus pestanejou, sem conseguir sustentar o olhar de Harry. Então se levantou e foi até o bar, de onde retirou uma champanha e três taças.

- Vamos brindar a esse momento. Só um gole para Ginevra; ela não deve tomar muito álcool.

~*~*~

Quando Harry saiu, Severus viu-se a sós com a esposa outra vez. Ela abriu os braços para ele, e ele enlaçou-a pela cintura, com cuidado.

- Você me surpreendeu. Se ele for mesmo para Hogwarts, nós iremos vê-lo pouco, mas, mesmo assim... acha prudente, trazê-lo para o nosso convívio? - perguntou Ginevra.

- Nós somos como ele, Ginevra: precisamos do desafio.

- É verdade. É muito sábio da sua parte, ter entendido isso.

- Eu tinha medo de perdê-la. Mas o que você disse ontem à noite me deu segurança.

- Obrigada por confiar em mim.

Severus abraçou com delicadeza a sua bruxa e sua bruxinha - os dois seres que eram o que ele tinha de mais precioso no mundo.

 

~Finis~

 

Veja também a adorável fanart criada por Karasu Hime para esta fic.

 

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Ptyx, Junho 2006