Fantasia Gótica VIII

 

" Espere por mim lá; não faltarei.
Estaremos juntos naquele vale profundo."

[Exéquia pela morte de sua esposa,
por Henry King, Bispo de Chichester.]

 

I

 

"Pois nunca um homem, sendo cruel como eu,
Deve morrer como eu até que todo mundo morra.
Devo me afogar com ela, rindo de amor, e ela
Se juntar a mim, tocando-me, lábios e olhos."
[Algernon Charles Swinburne, Les Noyades]


O que o esperava, ele sabia, seria pior do que qualquer Imperdoável. O Lord das Trevas - ele ainda não conseguia chamá-lo de outra forma, e talvez nunca conseguisse - já havia se divertido bastante lançando-lhe todos os Cruciatus que Severus poderia suportar.

Por alguns momentos Severus oscilou entre um estado de semiconsciência e o delírio. Formas vagas, espectrais, cercavam-no, sussurrando-lhe que ele merecia a punição. Que desde o momento que ele se juntara aos Comensais da Morte o seu destino fora selado.

Em seu delírio, ele estava sendo conduzido ao Hades. O silêncio total e a escuridão absoluta o envolveram.

~* ~* ~

II

 

Harry abriu os olhos, devagar. A escuridão não era menor do que quando os tinha fechados. Estendeu a mão e sentiu-a cair sobre algo úmido e duro. A atmosfera era pesada, o ar era fétido e quase irrespirável. Parecia ser um local fechado e bastante pequeno.

Harry tentou se erguer, amparando-se nas paredes úmidas. O chão estava molhado e escorregadio, e ele tremia convulsivamente, temendo bater com a cabeça e descobrir que estava em um túmulo. Mas não; o local era alto o bastante para possibilitar que se erguesse. Deu, então, um passo para o lado oposto ao da parede, e quase caiu em uma espécie de poço. Desviou com cuidado, e logo trombou com a outra parede. Esta era de pedra, visgosa e gelada. Tentou acompanhá-la, mas ao virar noventa graus, deu com algo mole ao chão.

Era uma forma humana. Harry se abaixou, e tateou-lhe o braço.

- Deixe-me em paz! - rosnou a forma caída.

Harry reconheceria aquela voz em qualquer lugar. Severus Snape. O traidor. O assassino de Dumbledore. O que estava ele fazendo ali, jogado ao chão?

O espaço mal dava para duas pessoas, e ainda havia o risco de se cair no poço. Snape estava todo encolhido ao chão. Harry sentou-se a seu lado. Não havia nada que pudesse fazer.

~* ~* ~

Ron e Hermione tentavam salvá-lo, mas Snape lançava-lhe um Avada Kedavra. Seu corpo era lançado nos ares, e ele despencava da Torre de Astronomia.

O berro que lhe saiu da garganta foi silenciado por uma voz grave, e mãos sacudiram-lhe o corpo.

- Potter.

- Ahn?

- Você adormeceu e teve um pesadelo.

Adormeceu e teve um pesadelo. Como se estar dentro de um calabouço minúsculo, úmido e gelado com Snape não fosse pesadelo suficiente.

- O que você está fazendo aqui? - perguntou Harry.

- O mesmo que você, provavelmente.

- Mas... você é um Comensal da Morte.

- Não é o que o Lord das Trevas acha.

~* ~* ~

Seus olhos já estavam mais acostumados ao escuro, e ele pôde ver os ferimentos no corpo de Snape.

- Não olhe para mim assim - disse Snape. - Você só está vivo agora porque eu matei os ratos e morcegos que eles deixaram aqui para nos receber.

- Ugh. - Harry estremeceu. - Como você fez isso?

- Eu estava com raiva. Muita raiva. Acho que usei magia sem varinha. Depois fiquei esgotado. Joguei todos os corpos no poço. Antes disso, pensei em me lavar lá, mas vi que está cheio de Inferi.

Harry estremeceria de novo, se já não estivesse anestesiado.

- Provavelmente corpos de outras pessoas jogadas aqui...

Snape deu de ombros.

- Talvez.

~* ~* ~

Ah, era gostoso, aquele corpo pressionado contra o seu. Harry estava ficando excitado, e buscava o contato, apertando-se contra ele. Seus próprios gemidos o acordaram.

Oh, não. Ele adormecera outra vez e estava se esfregando em Snape! Que, por sua vez, estava se esfregando nele!

Harry ergueu a cabeça para encarar Snape e viu que ele estava de olhos fechados. Snape também teria adormecido? Os dois estavam deitados - encolhidos, pois a cela era pequena demais para que se esticassem - e seus corpos, como que por vontade própria, haviam-se entrelaçado.

Harry apertou-lhe o ombro.

- Snape?

Snape abriu os olhos e estremeceu.

- Potter, o quê... Oh...

Snape encolheu-se todo, o máximo que podia, para se afastar de Harry, e depois se sentou, comprimido em seu canto.

- Er... Tudo bem - disse Harry.

Snape não disse nada.

~* ~* ~

III

 

"E eu deveria tê-la abraçado, e você a mim,
Como a carne abraça a carne, e a alma a alma.

Se eu pudesse mudá-la, ajudá-la a me amar, querida
Se eu pudesse dar-lhe o amor que lhe adoçaria a morte,
Nós cederíamos, afundaríamos, mãos e pés entrelaçados,
Morreríamos, afogar-nos-íamos juntos, e hálito contra hálito;

Mas você teria sentido minha alma em um beijo (...)"
[Algernon Charles Swinburne, Les Noyades]


Da próxima vez, foi de propósito que Harry o abraçou e comprimiu o corpo contra o dele. Eles estavam completamente sujos de lama, e Harry até já se acostumara ao cheiro de seus corpos. Eles cuidavam de fazer suas necessidades no poço, mas isso não era o bastante. De perto, os ferimentos de Snape eram ainda mais repugnantes, mas quando Snape o abraçou com o que ainda lhe restava de forças e eles se tocaram, lábios contra lábios, peito contra peito, Harry sentiu uma profunda emoção.

Snape inclinou a cabeça e enterrou-a na curva do pescoço de Harry.

- Harry - disse Snape, distribuindo beijos e mordidas por seu pescoço, orelha, rosto, boca - há tanto tempo eu queria isso!

Harry mal podia ver-lhe a expressão, mas algo no tom de Snape revelou, naquela hora, o que mil palavras e gestos não teriam revelado. A partir daquele momento, nada mais seria o mesmo, nunca mais. Os olhos de Snape brilharam como estrelas. Uma nuvem de incenso se elevou do solo, e as águas do poço começaram a murmurar harmoniosamente. Uma felicidade sobre-humana preencheu Harry.

O corpo de Snape contra o seu era firme e macio ao mesmo tempo; eles se livraram das roupas para ter mais contato.

- Eu pensei que você me odiasse - disse Harry.

- E odeio.

Harry deu um sorriso torto.

- Mas você disse... que desejava isso há muito tempo. Como é isso?

- Como é isso? Não sei. Você me diga. O que é que me faz querer proteger você, mesmo sabendo que você me odeia? O que é que me faz querer que você não me ache repugnante? O que é que me faz querer que você me respeite e reconheça a minha lealdade? Eu mesmo não sei, e não entendo. Agora não importa, de qualquer modo, porque nós dois vamos morrer.

Harry tocou as faces de Snape e encontrou uma lágrima escorrendo por elas. Harry queria dizer tantas coisas. Queria dizer que agora confiava nele, e que se sentia culpado por não tê-lo feito antes. Queria dizer que gostaria que tudo tivesse sido diferente. Queria dizer que, juntos, eles teriam podido vencer todo o mal. Queria dizer que... As palavras pararam-lhe na garganta. Mas seus lábios procuraram os de Severus, sôfregos. Seus corpos pareciam saber o que eles não sabiam. Parecia muito pouco, e parecia ser tudo o que eles tinham agora. E no entanto...

- Severus, a morte não é o fim. Eu ouvi as pessoas, do outro lado do Véu.

- Harry... - Era inacreditável, mas o tom de Severus era divertido. - Você está me convidando para um encontro?

A risada dos dois ecoou pela cela e pelo poço, e as paredes vibraram de um modo estranho, como se o riso e seus corpos entrelaçados fossem um desafio às leis do universo. Mas Harry e Severus já haviam transcendido esses limites que o universo lhes impunha.

 

Fim

 

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Ptyx, Novembro de 2005