Conseqüências
Autora: Nym

 

Quando não há amanhã, não pode haver conseqüências para as ações desta noite. Nenhuma punição para um beijo imprudente. Quase nem mesmo lugar para o remorso; nenhum para a vergonha. Ele sente a mortalidade também, fria realidade, e a carne nos aquece para enfrentarmos a noite. Beijos nos trazem a absolvição para crimes que jamais nomearemos; pensamento e palavra e ação. Mesmo a ação que é realizada aqui, purificada em paixão. Quase doce. Um contraponto tão melancólico a tudo o que éramos, mas entre nós, nossa reverente falta de palavras, escolhemos rejeitar a esperança. Não há amanhã. Nem nascer do sol. Nem conseqüências.

O sabor dele encarna tudo o que é bom e puro na trama de minhas experiências; não tão poucas que eu deixe de reconhecer sua pureza. Eu serei o último a abrir os olhos e me maravilhar diante dele e o primeiro, o único, a me aquecer à luz de seu desejo. Dificilmente um conforto, saber que amanhã ele estará extinto e que, se a esperança vencer a razão e um de nós sobreviver, este momento nunca voltará. Talvez um de nós viva. Maldita esperança. Interrompe os beijos, interrompe o fluxo e refluxo de nosso silêncio permissivo. Um de nós talvez tenha de viver - com isto. Como conseguirá, qualquer um de nós?

- Basta. - Minha voz escolhe este momento em particular para falhar, para trair minha insinceridade. Sem aquelas claras, frias mentiras, estou nu e enfrentando o amanhã sem defesas. Ele só me abraça com mais força, as mãos como garras. - Isto não é certo. - Desta vez, a mentira quase me sufoca. Jamais senti que algo fosse tão certo.

- Não me importo. - Palavras ousadas, mas tensas de medo. Ele deve querer apagar o amanhã tão desesperadamente quanto eu, mas não sabe quão breve e frágil seria o feitiço que lançaríamos. Seguro-lhe os ombros e o empurro para longe. Ele resiste.

Sou beijado, deitado de costas com o peso dele sobre mim, e pela primeira vez é ele que se encarrega do beijo. Eu não faço nada. Ele é desajeitado, tão jovem mas tão sincero em sua tentativa. Lágrimas transformam nossos lábios em sal, e sei que elas não são minhas. Será que ele sabe que está acariciando uma criatura que jamais derramou uma única lágrima? Nem de remorso, nem de dor, nem mesmo de raiva. Nem uma única lágrima, por nada ou ninguém. Passei tanto tempo sendo desumano na presença dele, talvez ele saiba.

- Por favor - ele sussurra, o sopro da vida contra meus lábios. - Por favor, não pare. - Talvez ele não se importe se eu visto apenas farrapos mendigados e emprestados de humanidade, já que sou a única outra pessoa aqui. Suas escolhas são um tanto limitadas. Assim como as minhas. Fui um monstro, em minha vida, e um bobo. Talvez até mesmo um herói. Esta noite, pela primeira vez, sou impotente - para qualquer outra coisa, exceto isto. Uma escolha me resta a fazer, mas não a faço por mim mesmo. Ergo minha mão, dedos em seus lábios para mantê-los separados dos meus. Ele beija meus dedos, então, o sussurro de lábios secos e as leves carícias de sua língua oferecendo o doce esquecimento. Talvez até mesmo um momento de alegria.

Uma língua tão inocentemente perversa. Separa as pontas de meus dedos sem esforço, e minha mão simplesmente se rende, as barreiras desmoronando antes que eu possa impedir. Ele leva o mesmo beijo aos meus lábios. Se tivéssemos tempo de saboreá-lo, talvez pudéssemos passar a noite em apenas um beijo. Nada proibido jamais teve o sabor de um encanto antes. Inocente, como se em vez de manchá-lo eu pudesse sair daqui envolvido um pouco em sua pureza. Não sou um tolo completo. Conheço a fome que ele revela pelo que é: física, crua e tão nova para ele que é uma necessidade dilacerante - não por mim, mas por contato. Por um encanto que afaste a escuridão de seu medo. Eu podia ser qualquer um, deitado aqui, compartilhando a aguda antecipação da morte com ele, e ainda haveria beijos. Sua necessidade é cega, mesmo para alguém como eu, e nós dois declaramos em silêncio nossa disposição de sermos usados assim. Isto não é nada mais do que homens condenados compartilhando um último gosto de vida. Isto...

- Isto é obsceno. - Viro para o lado, separando nossas bocas antes que ele sinta a mesma amargura que eu. Posso terminar com isso. Tenho truques e ilusões e formas de escapar à intimidade que a sua mente honesta jamais poderá esperar compreender, mas é melhor para ele que seja eu aquele a dar um fim a isto. Ele está paralisado sobre mim, rígido e mal respirando. Então...

- Você me odeia a esse ponto. - Nenhuma amargura ou acusação, nenhuma zombaria ou sarcasmo. Seu tom apagado, morto, está além de nossos limites, tanto quanto a compaixão naqueles beijos.

Eu poderia rir, se ele não estivesse alojado entre minhas coxas, tão perto que sinto o cheiro de seu medo. Dessa distância, tal crueldade parece impensável. Quantas vezes tive vontade de cuspir-lhe as palavras no rosto? Quantas vezes fui contido por nada mais do que o que um homem velho considera "apropriado em um Mestre de Hogwarts"? As palavras são tão familiares à ponta de minha língua que é de surpreender que eu tenha encontrado fôlego para outras. "Sim, Potter, eu o odeio. Amaldiçôo o dia em que nasceu. Cuspo no túmulo do seu pai e, se tivesse poderes para isso..."

Eu poderia rir.

- Não. - Ele ficaria ressentido com a minha resposta, qualquer que fosse. Ele recua de boa vontade quando eu o empurro, deslizando de cima de mim até que não haja contato físico entre nós além do toque da ponta de meus dedos na concavidade de sua garganta. Mantendo-o encurralado. - Apenas acontece que eu tenho um motivo melhor para frustrá-lo. - Não deveria importar se ele escolhe acreditar ou não em mim. Ele sabe o que é certo e o que é errado e, apesar de todas as evidências em contrário, é dotado de senso comum. - O medo não é um bom juiz. - Afasto minha mão, roçando-a em seu joelho, e ambos nos sobressaltamos com o toque acidental. A tolice disso me enraivece. - Não é desculpa para uma idiotice completa.

Escuto sua respiração; rápida, emocional.

- Nunca lhe fiz nada. - Há um friccionar e um arrastar quando ele se afasta de mim. Provavelmente para o mais longe que possível, odiando as paredes que o impedem de colocar quilômetros entre nossos corpos.

- O que significa isso?

- Você me odiava antes mesmo de me conhecer.

- Vocês crianças usam essa palavra sem nenhum cuidado. Ódio. - Com certeza ele deve estar furioso por ter sido chamado de criança. Ou talvez possa escutar meu divertimento. Se pudesse ver mais dele além do fantasma cinzento de um vulto, sem dúvida receberia um olhar fulminante. - Sabe ao menos o significado da palavra? Você me odeia, Potter?

- Sim. - Eu não estava preparado para aquela calma veemência. Não é, tipicamente, a resposta de uma criança. Nenhuma petulância, apenas convicção expressa em voz baixa. Pergunto-me a que pergunta ele está respondendo. É uma oportunidade tentadora de explorar o assunto. O quanto ele sabe do ódio, apesar de todas as formas pelas quais foi tocado por ele? Nada, eu penso, mas já me enganei bastante sobre ele no passado. E ele se enganou sobre mim.

Sinto a estranha relutância de encarar outra alternativa.

- Então é uma sorte que tenhamos recuperado a razão. - Deixe estar. Outro final. Se sobrevivermos à nova manhã, vou garantir que ele encontre tempo para me esclarecer a respeito do ódio.

- É. - A voz de uma criança e a resposta de uma criança. Ele escolhe a segurança, e eu escolho o silêncio insone, examinando minha própria sensação de alívio. Nós, nenhum de nós tem respostas para nossas perguntas, mas talvez tenhamos aprendido algo. Algo que só terá valor se sobrevivermos à batalha que virá.

Não pela primeira vez, volto todas as minhas energias para a questão da sobrevivência. A dele e a minha.

 

Fim

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O original desta história, em inglês, Consequences, pode ser lido aqui.