Primeiro Dia
Autora: Nym


Sem perceber o fato de que o visitante entrara sem bater e em estado de quase apoplexia, Hagrid saudou-o com um sorriso radiante.

- E aí, cumé que foi o primeiro dia?

- Você não faz idéia - disse Snape, batendo a porta atrás de si e sem sequer dizer "olá". - São todos da pior escória! Como uma praga de gafanhotos assolando a escola, sempre no meu caminho, onde quer que eu vá. Um perigo ambulante! Minha classe está cheia de ... de pesadelos da altura do meu peito que acham que sabem magia! Eu nunca fui assim! Fui? - Ficou sem fôlego antes de esgotar as queixas, e respirou fundo algumas vezes. - Eu devia ter ido para Azkaban. É tão seguro lá quanto aqui, e com certeza eles não aceitam crianças!

- Num diga isso! - Pela primeira vez, Hagrid pareceu perturbado pela explosão. Parou de descascar batatas e enxugou as mãos no avental. - Mió uma praga de gafanhoto do que os Dementadô, professô.

Snape estreitou os olhos, enfim prestando atenção ao homem cuja cabana invadira.

- Professor! - repetiu ele, em tom de tédio.

- Ocê é professô agora. Professô de Hogwarts. - Hagrid parecia orgulhoso o bastante para ser a mãe de Snape. - O que ocê ensinô pra eles hoje?

Derrotado pela óbvia inabilidade de Hagrid em compartilhar o seu horror diante da situação, Snape sentou-se junto ao fogo e refletiu sobre a pergunta.

- A ter medo de mim - acabou dizendo. Hagrid o encarou com um ar desconfiado. Snape desviou os olhos, para o fogo. Se Hagrid apenas sacudisse a cabeça e parecesse desapontado, ou revoltado, ou qualquer das outras coisas que todos os demais haviam feito, a vida faria tão mais sentido. - Preciso de um trago.

- Essa é a úrtima coisa que ocê percisa. - Hagrid lançou-lhe um olhar severo, mas não tentou impedi-lo de pegar o garrafão de uísque junto à parede da chaminé. - Imagine ficá na frente duma crasse de primeiro ano amanhã com a cabeça estourando e o estômago embrulhado. - Viu Snape devolver o garrafão ao chão com força. - Além do mais, se ocê começá a bebê no primeiro dia, nunca mais vai pará.

- Esse era o plano - replicou Snape, sarcástico. - Não que as crianças prestem atenção o bastante para notarem.

- É só fazê ficá interessante pra eles - respondeu Hagrid, sacudindo a faca de descascar. - Nada pió do que um professô maçante, né?

Snape resmungou algo sobre pirralhos ingratos e sobre o professor Binns, e Hagrid limitou-se a sorrir. Hagrid era a única pessoa em Hogwarts que parecia capaz de suportá-lo por mais do que dois minutos. Hagrid o fazia se sentir como se tivesse onze anos de novo. Hagrid fazia um chá horrível que era forte o bastante para sustentar uma colher em pé, era servido em xícaras do tamanho de caçarolas e tinha um efeito mais calmante do que qualquer poção conhecida.

- Sabia qu'ocê é o professô mais jovem de Hogwarts neste séc'lo?

- Disseram-me que, se eu pusesse o pé na sala dos professores, envelheceria quarenta anos instantaneamente - respondeu Snape, olhando ansioso para a sólida chaleira e o bule. Então ficou tenso. - Não é verdade, é? - Em Hogwarts, a gente nunca sabe.

- Eles costuma dizê isso pros professô de Defesa contra as Arte das Treva. - Hagrid meditou, puxando a própria barba. - Já encontraro ele?

- Não. - Snape suspirou. - Suponho que vão pedir a nós todos para substituí-lo até que ele ... hum ... reapareça.

- Essa matéria é amardiçoada. Pode escrevê o que falo - acrescentou Hagrid, sacudindo a faca outra vez. - Nada desse tipo nunca aconteceu com um Mestre em Transfiguração. Nem em Poções. - Balançou a cabeça para cima e para baixo, com cara de que sabia das coisas, e olhou para Snape. - Vai querê um chá, então?

Muito aliviado, Snape assentiu. Durante anos tentara reproduzir o processo de preparação do chá utilizado por Hagrid, aplicando vários princípios de preparação de poções e tudo, desde uma precisão escrupulosamente científica até fazer com os olhos fechados, e nenhuma infusão chegara perto de ter o gosto certo. Isto o levara à relutante conclusão de que era a combinação de ter aquela companhia em especial e de que alguém fizesse o chá para ele que tornava o sabor tão bom. Relutava, também, em admitir para si próprio que, mais do que qualquer dos horrores que presenciara, suportara ou infligira nos últimos anos, o fato de que algumas coisas se recusavam a se submeter à explicação lógica era o que mais o perturbava na vida. Por que o chá tinha um sabor diferente quando Hagrid o fazia era um desses problemas.

Sem perceber que estava dando ao seu hóspede motivos para desconforto, Hagrid mergulhou as folhas de chá descuidadamente no bule aquecido e despejou a água, assobiando baixinho o tempo todo.

- Pelo menos as acomodações são toleráveis - declarou Snape, para quebrar o silêncio. Conversa fiada era algo complicado e, embora soubesse que jamais adquiriria a tendência natural para a fofoca e o bom-humor de Hagrid, bem que tentava, sempre.

- As masmorra são o seu lar, né? - Os cantos dos olhos de Hagrid enrugavam-se com a ameaça de um sorriso. - Ocê sempre viveu por lá.

- Tempo o bastante.

- Num se esqueça, ocê pode se sentir solitário, se esconden'o na escuridão. Ocê num tá acostumado a ficá sozinho, na verdade.

- Eu era Slytherin, Hagrid. Não Gryffindor. - Os Gryffindors se juntam em bandos e fazem questão de depender uns dos outros. Os Slytherins aprendem rápido a cuidarem de si mesmos.

- Ocê ainda é. - Hagrid comprimiu um horroroso abafador cor-de-rosa sobre o bule antes de depositá-lo na mesa. - E acho que Dumbledore espera que ocê possa dá pros jovem Slytherin uma dica ou duas sobre, assim, pensá com a própria cabeça. - Imensas canecas de porcelana marrom, lascadas, juntaram-se ao feio abafador de bule. - Assim, vamo dizê, ele qué qu'ocê seja um exemplo.

- Oh, claro. - Não podia evitar o sarcasmo, diante de idéias como aquela. Snape agarrou o antebraço direito até que as unhas deixassem marcas pela manga. - Se eu pudesse engarrafar o seu otimismo e vendê-lo no Beco Diagonal, morreria rico.

Talvez fosse bom, pensou Snape, que Hagrid escolhesse encarar aquilo como um elogio.

- Despois de tudo o que aconteceu, só dá pra ficá mió - explicou Hagrid, afundando novamente na cadeira. - Pió é que num dá pra ficá, né?

- Depois da tempestade, a bonança - disse Snape, descansando o queixo sobre a mão. - E a xícara sempre está meio cheia, e não meio vazia. Certo, Hagrid?

- Ocê cuide com essa sua língua - aconselhou-lhe Hagrid, inclinando-se para servir o chá. - Pode cortá arguém um dia desse.

Snape sorriu. Não podia evitar. Mas era estranho.

- Assim tá mió - falou Hagrid, erguendo a caneca em saudação.

O otimismo de Hagrid não era confiável, mas as coisas pareciam mesmo irem melhor. Haviam-se passado dias, semanas, depois meses, e Snape quase se convencera de que a dor ocasional no braço não era nada além de um sintoma de sua própria fraqueza ou consciência. Quase.

Quase.

Não havia nada mais para se ver. Apenas o eco fantasma da familiar sensação de ardência e daquela última dor, tão profunda sob a pele que se gravava na alma e nos sonhos. Não restara nenhum Comensal da Morte em pé, no momento em que Voldemort caíra. Nenhum, leal ou traidor. Nem Snape.

- Bem, arguém tem de dar o exemplo ou os jovem Slytherin vão tudo prum caminho pió do que o da sua turma. - Hagrid fez uma pausa, franziu o cenho, e então adquiriu uma expressão tristonha. Mas Snape ergueu a mão. Se Hagrid lhe pedisse desculpas por ter sugerido algo que, de fato, era verdade, Snape achou que se sentiria mal. O livro de registros de sua Casa no seu último ano de escola parecia uma lista de chamada de Comensais da Morte. - O véio professô Albermarle perdeu a paciência anos atrás, Queria se aposentar antes mesmo de você entrá na escola, e ainda num apareceu ninguém pra ocupá o lugá dele.

- Hagrid, Dumbledore não iria pensar em mim como um substi...

- Dê tempo ao tempo - falou Hagrid, assentindo com firmeza. - Tenha paciência.

- Você é mesmo um otimista inveterado - observou Snape, mas aquilo era algo para se pensar. Lecionar não era uma profissão a que muitos Slytherins aspirassem. E, depois de três aulas duplas, Snape não tinha muitas dúvidas a respeito do por quê. A paciência Slytherin era um esforço de longo prazo e fracassava miseravelmente diante dos alunos incultos, imbecis ou de alunos mais velhos com sorrisos arrogantes que eram calouros do primeiro ano quando Snape dera o último floreio em seu último exame dos EFBE (Exames de Feitiçaria Barbaramente Extenuantes). Em suma, esperava-se mais de qualquer jovem mago do que sair da escola com honras ilustres só para rastejar de volta e assumir um cargo de professor antes dos vinte e cinco anos. Era algo que simplesmente não se fazia. O mago saía da escola e ganhava fama. Encontrava uma esposa e cumpria seus deveres para com o mundo dos magos. Arranjava um emprego que pagasse bem e enchia o seu cofre em Gringotts. Snape bufou baixinho junto à caneca de chá. Um em cada três não era um fracasso completo. De um jeito ou de outro, ele ganhara fama. - Imagino que o professor Binns permanecesse por aqui na esperança de sobreviver a Dumbledore. Olhe para ele agora.

- Num tem nenhum lugá que diga que ele num pode sê Diretô. - Hagrid deu de ombros. - Num tem nenhuma lei...

- Ele está morto, Hagrid. Vinha lecionando desde os cinqüenta anos e agora está *morto*.

- Mas inda é professô.

- Exatamente o que estou querendo dizer! - Snape tomou o último gole de chá e olhou para o fundo da caneca. Era óbvio que ia precisar de doses maiores ou mais fortes da coisa, se tivesse de encarar o mesmo inferno todos os dias pelo resto de sua vida. Não se sentia nem um pouco tranqüilo. - As oportunidades de ascenção são extremamente limitadas.

- Binns consegue recitá os livro de trás pra frente, mas nunca teve o seu cérebro. Nem de longe.

O elogio quase doía. De que valia o seu cérebro se ele já provara às pessoas que importavam que ele o enfiara naquele lugar?

- Acho que o professor Serle desaparatou de puro medo quando viu os terceiranistas - disse Snape, erguendo-se devagar e assegurando-se de que o manto se assentasse, revelando as linhas elegantes e sem vincos. Lecionar Poções a imbecis com certeza valia mais a pena do que rastejar diante de seres como Voldemort. Um novo conjunto de mantos, uma nova vassoura e todos os bons livros de feitiços e poções de que tanta falta sentira nos tempos de sua agitada vida dupla ... e não ter mais de buscar formas de se inserir no clã Malfoy, genes primeiro e dignidade por último ... sim, havia certas vantagens. - Se ele tivesse algum bom-senso, estaria na Mongólia fazendo algo menos perigoso, como lutar contra dragões. - As orelhas de Hagrid praticamente ficaram em pé diante da palavra "dragões". Algumas coisas não mudavam nunca. O sujeito fazia um chá irritantemente bom e era apaixonado por qualquer coisa que fosse maior ou mais feroz do que o próprio. - Você devia tirar férias. Ir para o País de Gales. Ir procurar dragões. - Snape não se lembrava de ter visto Hagrid deixar a escola nem uma vez durante seu tempo de escola, e ninguém pensara em outra coisa exceto em Voldemort nos últimos anos. - Ver se me arranja umas escamas para os estoques. O preço subiu tanto que já estão custando um galeão cada uma. - Parecia que as pernas de Hagrid estavam a ponto de ceder de prazer diante da fantasia maravilhosa, mas ele sacudiu a cabeça e a cabeleira. - Estou falando sério. Você podia procurar um professor de Defesa Contra as Artes das Trevas para nós enquanto está por lá.

- Nunca fui ao País de Gales - disse Hagrid. Falava de um jeito como se fosse um distante paraíso tropical. Comparado à ventosa Hogsmeade e às centenas de crianças pisoteando o solo de que Hagrid cuidava com tanta devoção, provavelmente era mesmo.

- É verde - falou Snape, notando que acabara de ter uma conversa. Uma conversa que não envolvera segredos sussurrados, rastejar diante de um maníaco perverso ou adular Lucius e a égua reprodutora que era noiva dele. Ou repreender vinte crianças incrivelmente estúpidas por causa da sujeira que haviam feito no teto. Era... agradável... trocar palavras sem outra razão além de passar o tempo. Isso quase o perturbava, na verdade, e lhe dava uma sensação estranha no estômago. Ou talvez ele apenas tivesse tomado o chá rápido demais. - É melhor eu voltar. Tenho detenções a supervisionar.

- Já no seu primeiro dia? - Hagrid desceu de sopetão de seu paraíso no País de Gales. - Que ânimo!

Snape assentiu. Algumas de suas escolhas passadas haviam sido questionáveis, com certeza, mas ele sempre acreditara em fazer as coisas do jeito certo. Além disso, se aterrorizasse o bastante os sapinhos, talvez Dumbledore o demitisse.

- Obrigado pelo chá.

- Vorte sempre que quisé, professô. É sempre bem-vindo. - E Hagrid estava sendo sincero. Ele era bem-vindo. Ele agora era o professor Snape, e não Severus, o menino magrinho e sério de Slytherin que perambulara por ali durante sete anos, cheio de perguntas sobre Fungos Proibidos e as propriedades dos excrementos de Centauro e olhando de baixo para cima para Hagrid porque Hagrid nunca o olhara de cima para baixo. Snape conseguiu dar um aceno razoavelmente polido a caminho da porta.

Aquela sensação estranha, de estômago levemente embrulhado, ficara mais forte.

Seu braço esquerdo doía até os ossos.

 

Fim


O original desta história, em inglês, First Day, pode ser lido em http://nym.amplexus.org/