Por Entre as Árvores
Autora: Mosh

 

Ele sempre odiara as luzes fortes dos corredores de St Mungo. Eram brilhantes demais, estéreis demais - como diabos os doentes podiam melhorar em um lugar de cores tão anêmicas e com uma atmosfera tão opressiva?

As pessoas passavam por ele, Medibruxas e pacientes também, desviando-se de seu caminho como se evitando passar através de um fantasma. Se estivesse mais escuro, teriam visto apenas um homem trajando vestes negras com uma cobertura de cabelos negros ocultando-lhe o rosto. Mas sob as lâmpadas fosforescentes que zuniam eles viam um pálido fantasma com melancólicos olhos negros e uma boca cerrada, zangada, com a rígida expressão da determinação. Um homem feito de um duelo entre sombra e branco.

O clique de uma porta se fechando no terceiro andar ressoou.

- Que droga, Potter.

O quarto era igualmente estéril, com suas paredes caiadas e divisórias de cama verde-claras e um jovem pálido em pé diante de uma janela coberta de gelo.

- Que diabos, garoto.

Os dedos se curvaram em desesperada frustração, depois agarraram um ombro jovem, esquelético. Um ombro que não estremeceu nem recuou sob o arranhar de afiadas unhas amareladas pelas poções.

- Potter. Harry.

Uma breve sacudidela, como milhares de outras breves sacudidelas que ele tentara antes daquela em vão.

Nada.


* * * * * * * * * *


- Há um garoto parecido com Longbottom, infelizmente, na classe do primeiro ano este ano. Ele não consegue entender nem a mais simples... isso é inútil. Uva?

Snape empurrou uma uva verde bem grande contra os lábios secos de Harry e, depois de um instante, Harry abriu obedientemente a boca e a deixou entrar. Mastigou com delicadeza, os olhos escancarados e sem foco, como se saboreasse uma comida deliciosa pela primeira vez.

- Já que Lupin insiste em mandar essas uvas estúpidas, você bem que pode comer as desgraçadas antes que se estraguem.

O arrastar de sapatos macios pelo chão anunciou a chegada da enfermeira - Kelly era o nome dela - enquanto o fraco sol de inverno desaparecia atrás das nuvens lá fora. - Sr. Snape, o senhor vai...

- Sim, sim, vou ficar.

- Vou baixar a cama.

Era inútil, na verdade, porque Snape nunca dormia nela. Preferia a cadeira junto ao leito de Harry. Era dura e desconfortável, como Harry, mas era o mais próximo que Snape podia chegar sem se deitar ao lado dele à noite.


* * * * * * * * * *


- Olá, professor.

- Não sou mais seu professor.

- Eu sei. Prefere que o chame de Severus?

- Não.

- Então vai ter de ser "professor".

- Granger...

- Como ele está?

- Na mesma.

Ela ficou ali por uma hora, e nenhum dos dois falou, apenas olharam para o jovem com dois graus de desejo bastante diferentes. Harry andou pelo quarto, acabando por tocar a janela com seus adoráveis dedos curiosos. Sua cicatriz desaparecera quase ao ponto da não-existência, exceto pela mais leve linha prateada que só era visível sob luz direta, ao contrário de antes, quando sangrara e avisara-os de que havia chegado o momento e Harry ficara gritando o nome do Lord das Trevas e agarrara sua varinha e aparatara, o rosto vermelho de raiva e as pálpebras pesadas de exaustão e ele dissera...

- Estou indo.

Snape quase pulara ao som da voz dela. Assentiu com a cabeça enquanto ela se levantava. Vou vê-la amanhã, sem dúvida, ele pensou. Hermione aproximou-se de Harry e beijou-o suavemente na face, murmurando:

- Ron mandou lembranças - antes de irromper em lágrimas e partir, como sempre fazia.


* * * * * * * * * *


- Venha cá. Eu o desafio, sua pestinha arrogante. Venha cá e me enfrente.

Harry comprimiu a testa contra o vidro brilhante, olhando para fora com um olhar vago.

Snape tentou outra abordagem.

- Harry? Isso é ridículo. Isso é uma mer... uma estupidez. Se você ainda fosse meu aluno, eu tiraria todos os pontos de Gryffindor, e aí o que eles iriam pensar de você?

Uma mão se ergueu até a janela e traçou faixas de quatro dedos sobre a condensação, do topo até o parapeito.

Snape viu as gotas de umidade congeladas deslizarem devagar pela vidraça e então falou, baixinho, duvidando de que Harry pudesse ouvir do outro lado do quarto:

- Por favor.


* * * * * * * * * *


Isso já durara tempo demais! Dia após dia, noite após noite após dia após noite e Harry estava só ficando pior. Já era hora de fazer algo - qualquer coisa - para levá-lo para longe de toda aquela doença sufocante.


* * * * * * * * * * *


- Senhor! Senhor, espere! O que está...

- Estou levando-o para fora daqui. Saia do caminho ou vou amaldiçoá-lo por uma semana inteira, merda!

Os pés de Harry deslizaram pelos ladrilhos reluzentes, um suave sussurro dos sapatos se arrastando pelo barro cinza envernizado. Snape segurava Harry tão junto a si e se movia tão rápido que Harry parecia flutuar a seu lado, envolto em seus braços.

- Sr... Sr. Snape, por favor! Não pode fazer isso. Ele está passando por um...

- Não ouse me dizer pelo que ele está passando. Saia do meu caminho. Já!

- O senhor não pode levar os pacientes embora quando lhe dá na telha. Ele não está bem...

- Ele está morrendo aqui. - Snape cuspiu nas Medibruxas. - Pelo menos deixem-no morrer com dignidade. Onde estão as roupas dele?

Uma blusa cinza de lã quente e um jeans preto foram entregues a Snape para substituir o avental verde-azulado. Snape ajeitou as roupas contra o corpo magrinho de Harry como se vestir fosse uma arte; tomou o máximo cuidado, alisando aqui e ali.

Uma multidão se juntara, seus olhares mesclando medo e desaprovação, mas ninguém deteve Snape quando ele arrastou o menino como um boneco de pano pelas portas duplas de vaivém e para dentro do elevador.

- Potter - Snape murmurou, cheirando os cabelos do garoto enquanto desciam. A cabeça de Harry estava encaixada sob seu queixo, os cabelos contra o rosto de Snape como um óleo sedoso. Seus braços estavam moles ao redor dos ombros de Snape. - Que droga, Harry.


* * * * * * * * * *


Eles vinham quebrando a cabeça por quase vinte anos, Dumbledore e sua Ordem. Embora Dumbledore jamais houvesse admitido isso - e sem dúvida jamais admitiria - Snape se perguntava se o velho gagá sabia que matando o Lord das Trevas Harry também estaria matando a si mesmo. Que se danasse o amor de James e Lily Potter; não era agora nada além de uma lembrança apagada, pó e ossos. Com aqueles desgraçados Trouxas, os Dursleys, mortos, não sobrara uma gota de magia de sangue para Harry. Nada para lhe servir de âncora.

No saguão do hospital, Snape puxou Harry para dentro da lareira antes que os guardas pudessem alcançá-los.

- Para onde, para onde? Oh, que se dane tudo! Hogwarts!

E saiu em uma sala conhecida que fez seu coração bater um pouco mais rápido do que já estava batendo.

- Olá, Severus. Sabia que o veria hoje. Harry - disse Dumbledore em saudação, levantando-se atrás da escrivaninha.

- Eu...

- Eu sei. Agora vão embora, vocês dois.

- Mas, Diretor...

- Severus. Onde você acha que ele gostaria de estar, quando acontecer?

Snape engoliu em seco, piscou, apertou o ombro de Harry.

- Com...

Dumbledore assentiu com a cabeça.

- Com você. Agora vá. - Ele estava sorrindo tristemente, um brilho estranho em seus olhos que Snape não sabia decifrar e não tinha certeza de querer fazê-lo. - Apresse-se. E, seja o que for que decida fazer, não pare até chegar lá.

Onde, Snape quis dizer.

Fawkes piou suavemente em seu poleiro, de olhos secos. Snape empurrou Harry para baixo dele, mas Fawkes não parecia ter lágrimas o bastante para resolver o problema, então apenas virou a cabeça com outro leve piado melódico, olhando para Dumbledore.

- Vá - repetiu Dumbledore, inclinando-se por sobre a escrivaninha.

Snape sufocou um "droga" e manobrou Harry na direção da escada em espiral, o menino agora praticamente um saco de ossos em suas mãos.


* * * * * * * * * *


As masmorras... não, Potter detestava as masmorras. E Snape receava levá-lo para a Torre de Gryffindor, o risco de encontrar alunos forte demais para suportar. Causaria apenas um caos desnecessário.

O Grande Salão... oh, que lugar confortável para se ir. Snape repreendeu-se a si mesmo, prestes a cair de joelhos, Harry começando a escorregar de seus braços.

Onde, onde, onde?

- Severus Snape - disse uma voz grave quando Snape empurrou Harry para o Saguão de Entrada, completamente perdido.

Ele olhou para fora pelas portas abertas e viu os grandes flocos da neve caindo em espirais sobre a terra, as árvores da Floresta Proibida uma grande muralha marrom e branca à distância, segurando o castelo em seus braços - segura.

- Sim - sussurrou Snape.

- Os astros nunca mentem. - Firenze pôs seus imensos olhos prateados sobre o corpo bambo de Harry quando Snape e Harry passaram. O centauro estendeu seu braço duro como mármore, segurando as pesadas portas abertas para ele. - Eles nunca mentem, Severus...

Snape comprimiu o rosto contra a cabeça de Harry, descendo os degraus aos tropeções e adentrando os gramados crepitantes, gelados que cercavam o castelo. Os pés de Harry se arrastavam pela neve.

- Uma vez você disse que aqui era o seu lar, não foi? - perguntou, esforçando-se por manobrar o garoto naquele curto espaço de tempo. A neve caía em seus olhos e garganta enquanto ele aspirava em profundas golfadas de ar. - Você disse que aqui era o seu lar, mais do que qualquer outro lugar. - Esforçou-se para chegar até as árvores. - Odeio você por isso, Potter. Por não acordar quando sabe que deveria.

Seguiram rumo às árvores até que Harry, finalmente - depois do que parecera uma vida inteira - ficara pesado demais para ser arrastado.

Onde um conjunto de pegadas acompanhadas por duas linhas trêmulas desenhadas sobre a neve paravam, um conjunto único de pegadas continuou seu caminho solitário.

- Quase lá - disse Snape, erguendo Harry nos braços. - Quase. - Além da cabana de Hagrid. Além da Cabana dos Gritos. Além das lembranças. Além do ódio. Além do desejo. Além de tudo.

Entraram no bosque, Harry e Snape, dois homens no final de uma guerra terrível. A vida de um deles estava se esvaindo rápido, e o outro estava desesperado para que o restante da vida de um garoto se encerrasse em algum lugar que ele pudesse chamar de lar, algum lugar calmo e silencioso.

Uma coruja arrulhou suavemente, tristemente, e Snape disse um palavrão, desviando do caminho para escapar ao lamento de Hedwig.

E então ele parou, virou, e encontrou seus olhos grandes e solenes.

Ela mergulhou do galho de uma árvore próxima e aterrizou pesadamente em seu ombro, acolhendo sem hesitação, arrulhando em agradecimento.

- Suponho que você deva estar presente - conseguiu dizer Snape, agora carregando dois seres por entre a escuridão tortuosa das árvores. - Mas fique quieta.

Ela fez isso, mas puxou delicadamente os cabelos dele.

Quanto tempo ele resistiria? Quanto tempo conseguiria andar com um homem adulto nos braços e uma velha coruja nas costas?

Ele andou até que nenhuma neve chegava ao solo e suas pernas fraquejaram. Harry caiu em uma confusão de membros sobre a grama fria e tudo o que Snape pôde fazer foi se deitar sobre ele e beijá-lo, dando-lhe tudo o que podia. Hedwig esvoaçou até o solo da floresta e cacarejou desesperadamente no mesmo ritmo de seus beijos.

Cascos soaram à distância e arbustos sussurraram e galhos de árvores grunhiram. Snape mal o registrou; beijou e beijou Harry até seus lábios estarem congelados e doloridos e uma mão cair sobre seu ombro e puxá-lo para longe, e os beijos chegarem ao fim e...

Harry arquejou.

E a pele dos dedos de Snape se rasgou ao esfregá-los na lama e nas rochas para se segurar.

E então, com um estremecimento, Harry arquejou de novo.

Um facho de luz brilhou e irrompeu e incendiou as faces de Harry. Sua pele foi ficando menos pálida e as pestanas negras e úmidas vibraram enquanto sua garganta se contraía e ele tossia.

- Severus Snape.

Snape deixou escapar um grito.

- Severus Snape, ele não está morto.

- Não?

A terra parecia lugubremente silenciosa.

- Não. Sem magia, mas não morto. - Os cascos retumbaram, a forte mão o segurou no chão. A voz de Firenze falou com a agudeza de um diamante entre os galhos crepitantes da floresta maltratada pelo clima, parecendo vibrar no solo. - A vida que você vê deixando-o é apenas a magia que ele recebeu, sacrificada por sua vida. Ele não morrerá hoje.

Hedwig arrulhou, e Snape fechou os olhos.

E então, em um bater de coração, Harry acordou, um sopro murmurando por entre as árvores.

 

~Finis~

 

 


O original desta história, em inglês, Through the Trees, pode ser lido aqui.