A Espera
Autora: Luthien

Na hora mais escura da noite, em algum ponto entre a meia-noite e o raiar do sol, Hogwarts se aquieta. O castelo dorme, esperando pela manhã. Bem, quase todo ele dorme.

Uma vela ainda queima no escritório do diretor. A sala parece igual ao que sempre foi a qualquer outra hora da noite e em todos os outros dias de todos os anos desde que Dumbledore dela se apossou. Retratos silenciosos enchem as paredes. Olham para Dumbledore lá de cima com expressões sagazes e não de todo amistosas em seus rostos pintados. Expectantes é a palavra que melhor se aplica a eles. A fênix no canto também o observa, mas é impossível dizer como ela se sente, se é que emoções complexas podem ser atribuídas a tal criatura. Ela se senta perfeitamente imóvel em seu poleiro, velha e cinza e fundindo-se às sombras que espreitam nos limites da sala, fora do alcance da lâmpada da escrivaninha. O pássaro está nas últimas; o fato de que ainda esteja sentado ali, e não transformado ainda em cinzas fumegantes, é o único sinal seguro de que ainda vive.

O diretor trabalhou bastante esta noite, embora haja poucos sinais de seus esforços a serem vistos: apenas um único envelope em pesado pergaminho de couro de búfalo certifica a extensão de seus preparativos. Termina de endereçar o envelope, completando o l final de 'McGonagall' com o floreio de sua assinatura em tinta com as cores do arco-íris. O velho está quase no fim, agora. Resta apenas uma coisa a ser feita. Senta-se ereto na cadeira, olhando por sobre seus óculos de meia-lua para a alta vela que se sustenta precariamente na extremidade da escrivaninha. Mira a sombra lançada pela vela, que se estende como um dedo impossivelmente longo, fantasmagórico, apontando a Dumbledore, inexoravelmente, o alto espelho na parede mais distante.

Dumbledore não tenta evitar o inevitável. Sempre fez o que tinha de ser feito. Nunca recuou diante das exigências da necessidade. Agora, ele se levanta e atravessa a sala, sem pressa, até estar diante do espelho. De algum modo, a luz se moveu com ele, e a claridade é suficiente para se ver bem o espelho agora. Está estranhamente opaco, não refletindo nada na sala, nem o próprio Dumbledore. Ele faz um gesto com a mão, quase com negligência, e o espelho brilha. Ainda não reflete nada que um espelho comum refletiria, mas agora, de repente, uma imagem está entrando em sua face, onde não havia nada um momento atrás. Dumbledore mira a imagem, concentrado, por um instante. Ela mostra o Grande Salão, vazio e silencioso como deveria estar àquela hora da noite. E então a cena se esvai, substituída quase imediatamente por outra. Uma sala de aula, desta vez.

E assim o diretor faz sua ronda noturna, talvez pela última vez.

O espelho mostra a Dumbledore saguões vazios e corredores desertos. As escadarias estão imóveis. Os fantasmas não estão visíveis em lugar algum. Não há alunos andando por onde não deviam, nem professores ou empregados esperando para apanhá-los. Não há mestre de Poções com seu manto negro espreitando naquelas horas tardias. Até Filch e a sempre vigilante Mrs Norris parecem ter-se recolhido para a noite. Não há nem mesmo o mais leve farfalhar de uma capa de invisibilidade a ser ouvido. Ninguém está perambulando pelos corredores esta noite. Pela primeira vez.

A figura muda, e Dumbledore franze o cenho diante do que chega a seus olhos a seguir: um pequeno grupo de alunos reunidos junto ao fogo da lareira na sala comunal de Gryffindor. Estão em silêncio, como o resto do castelo. Dumbledore os identifica, um por um. Alunos do sétimo ano, todos eles. Os amigos de Harry Potter estão entre eles. Estão à espera.

Dumbledore gesticula com a mão, e o espelho fica vazio por um instante antes de mostrar uma sala contendo diversas camas acortinadas. Camas de alunos. Dumbledore sabe que as camas estão vazias sem precisar que o espelho lhe dê alguma prova. Este é um dormitório de Slytherin; nos últimos sete anos, abrigou o mesmo pequeno grupo de meninos. Agora eles se foram, e não irão voltar.

A figura se esvai e uma outra toma o seu lugar. O diretor conhece cada peça em Hogwarts, mas esta lhe é mais familiar do que a maioria. Ele nunca a viu desse jeito antes, contudo. As estantes de livros reviradas, móveis destroçados, poções espalhadas desordenadamente pelo chão - embora estas últimas estejam intactas, graças às garrafas de vidro inquebrável em que são armazenadas. O diretor aperta os olhos, buscando entre os destroços. Relaxa levemente ao encontrar o que procurava, estendido sobre um cobertor cinza junto à porta.

Lá está Snape, deitado, aparentemente intacto, apenas um arranhão ou dois desfigurando-lhe as desagradáveis feições. Os cabelos revoltos e os lábios inchados, silenciosos, contam a verdade sobre o que aconteceu ali naquela noite, depois que a violência inicial se exauriu. Os cabelos negros e rebeldes de uma cabeça aninhada em segurança sob seu queixo são outra pista.

O mestre de Poções tem os olhos voltados para cima, sem ver, mas quase despertos. Ele não irá dormir esta noite. Não sairá de sua posição atual nem fará qualquer movimento que possa perturbar o menino até não ter outra escolha. De manhã, ele se erguerá do chão todo rígido e irá amaldiçoar a todos por causa das dores nas costas. Sim, irá amaldiçoar a todos, talvez literalmente.

A imagem se altera outra vez. Agora Dumbledore está olhando para outro quarto conhecido, localizado em sua própria torre. Não se surpreende ao ver o vulto alto, de costas aprumadas, de sua vice-diretora, em pé junto a uma janela aberta, fitando a escuridão. Mostra-se impassível como sempre, a expressão de seu rosto inescrutável. Está vestindo um manto longo, cor borgonha, sobre a camisola, proteção insuficiente contra o ar frio da noite. Isso destoa. É atípico nela não estar totalmente preparada para qualquer eventualidade.

E então ele nota que os pés dela estão descalços.

McGonagall se vira e olha direto para ele. Dumbledore olha direto para ela. Ele sempre faz o que é preciso. Nenhum dos dois se move por um minuto inteiro. Dois. Então McGonagall estremece e se vira outra vez para fechar a janela. Quase imediatamente, Dumbledore gesticula com a mão, rompendo a conexão. O espelho está opaco outra vez.

Um som vem do canto. A fênix se mexe no poleiro. Pisca devagar.

- Ainda conosco? - pergunta Dumbledore. - Eu gostaria que você acabasse com isso de uma vez, Fawkes. - Sua voz soa rabugenta, mesmo a seus próprios ouvidos. Ranzinza. Velho e cansado.

Volta à escrivaninha. Não há nada mais a fazer além de sentar e esperar. O trabalho da noite está acabado, e ele está impaciente que a manhã chegue. Mas irá sentar e esperar, porque sempre faz o que é preciso.

É ainda a hora mais escura da noite, um pouco depois da meia-noite, porém agora mais perto da manhã. É a hora mais escura, quando todos nós estamos mais vulneráveis à dúvida, quando nossos medos mais profundos se erguem para nos atormentar e nos arrastam com eles se lhes dermos a sombra de uma oportunidade. Se nos deixamos abater.

Logo, estaria acabado.

 

Fim

 

O original desta história, em inglês, Waiting, pode ser lido em http://luthien.ebonyx.org/docs/fic/index.html