Desarmado*
Autora: Luthien

 

Meus olhos se escancaram e estou desperto, instantaneamente tenso e pronto a saltar e enfrentar o que quer que tenha perturbado meu descanso. A zona intermediária entre o sono e a plena vigília não é algo que eu tenha experimentado desde a infância. Ou estou dormindo, ou estou acordado. Não há um meio termo.

Outro segundo passa, e tomo consciência do peso morto apoiado em meu peito. É um peso familiar, como familiar se tornou ultimamente a experiência de acordar de repente durante a noite. Parte da tensão me abandona, deslocada por um lampejo de irritação.

Não sei por que continuo a tolerar a presença dele em minha cama. Devia mandá-lo de volta a seus próprios aposentos assim que nós... depois, enfim. Quase o fiz, quase o mandei embora, algumas vezes. E, no entanto, de algum modo a ação permanece um quase, nunca se firmando em uma certeza. Todas as vezes, ele se aconchega a meu lado e eu me vejo pensando que, com efeito, não vai fazer nenhum mal se ele ficar mais um pouquinho. A cama é grande o bastante, e eu não preciso tocá-lo. É o mesmo que se ele não estivesse deitado a meu lado.

Não engano a mim mesmo com essas mentiras cor-de-rosa, é claro, mas a prática de contornar a verdade se tornou um hábito para mim, com a vida que levei.

O braço dele pesa sobre minhas costelas. Acho que faz uma semana que dormi a noite inteira sem ter um dos membros dele jogado por cima de mim sem sequer um pedido de licença - não que eu fosse lhe dar permissão se ele houvesse pedido.

Eu até desculparia se houvesse acontecido só uma vez. Duas vezes, talvez, no máximo. Mas todas as noites de uma semana é de deixar qualquer um furioso. O fato de eu não ter feito nada para pôr um fim nisso em todo esse tempo só serve para me enfurecer ainda mais. Há algo nesse gesto que me deixa inquieto. É um gesto descuidado. Relaxado demais. Imprudente demais. Seguro demais. Ressalta as diferenças entre nós. Ou talvez não: não consigo afastar a idéia de que há cálculo nessa mesma falta de cuidado. Mas agora estou conjeturando, presumindo que a mente dele funcione de maneira semelhante à minha. Além disso, que motivo poderia haver para fazer isso, se é de propósito? A não ser que seja algo simbólico. Parte de algum tipo de ritual. Mas não. Isso é complicado demais para ele. Algo mais simples, mais básico.

Um gesto protetor?

Parece bem provável.

Tenho agora a minha resposta, e ela faz com que o sangue quente da raiva me percorra, direto até a ponta de meus dedos, que se curvam para dentro de minhas palmas enquanto, com esforço, consigo impedir que o sentimento violento irrompa em ação violenta.

Não sou eu quem precisa de proteção.

A violência vence. Estendo a mão para agarrar-lhe o ombro e o acordo com uma sacudidela, mas ele está adiante de mim, mesmo quando dorme. Sua perna esquerda se enrosca na minha direita e então ele está todo em cima de mim, um peso mais pesado e delicioso do que apenas seu braço. Minha atenção está centrada em suas coxas, que estão firmemente presas à parte superior de minha perna. Sua mão se agarra desesperadamente ao meu torso, acariciando e roçando de leve na minha pele, como se procurando por algo. Ele se comprime contra mim, empurrando-me ainda mais para baixo, e resmunga algo insistentemente junto à minha clavícula. Suas palavras são distorcidas, mas capto o suficiente para compreender o teor do que está dizendo. "Acaba com eles! Vai. Vai! Consegui. Consegui!"

Suas pernas se enredam ainda mais fortemente nas minhas, prendendo-me com força, como que para manter o equilíbrio - e de repente entendo o que está acontecendo. Minha raiva se transforma em incredulidade: ele está jogando Quadribol enquanto dorme.

Rigidez se comprime contra mim, mas dessa vez não são só as coxas dele. Não estou realmente surpreso - que a excitação do jogo costuma deixar os meninos tão duros quanto suas vassouras já era fato conhecido antes disso -, mas uma parte de mim está morrendo de vontade de fazer algum comentário áspero sobre o seu estado atual. Isso, todavia, exigiria que eu o acordasse. Prefiro não o acordar. Provavelmente deveria tirá-lo de cima de mim antes que ele decida agarrar o pomo de ouro. A pergunta é: como fazer isso sem incomodá-lo?

- Mmmm. Severus - ele murmura, e responde à pergunta por mim. Esfrega-se contra mim, com claras intenções.

Estou prestes a explodir, mas de raiva, não de desejo. Ele estava acordado o tempo todo. Cravo as unhas nas palmas de novo. Tenho feito isso com tanta freqüência ultimamente que saúdo a familiaridade da dor. Alguma coisa consistente, pelo menos. Isso e a raiva que a acompanha.

Afasto-me dele e o deixo abandonado e sozinho no meio da cama.

- Não sou um brinquedo seu para que me use quando quer - reclamo. - Vá encontrar outra vítima.

Isso o acorda definitivamente. Posso apenas discernir a forma negra que deve ser o braço dele estendendo-se para pegar a varinha na mesa de cabeceira. Um "Lumos" dito em voz baixa e pestanejo por causa da luz. Depois do número necessário de segundos, meus olhos se ajustam e descubro que ele está olhando para mim. Não há raiva em sua expressão. Nada de jogos. Apenas um olhar sério. Um olhar triste.

- Não temos tempo para perder desse jeito - ele diz, e eu estremeço. Não suporto olhar para ele. - Logo o sol irá nascer.

- E daí? - As palavras soam petulantes e infantis aos meus ouvidos. Quando isso aconteceu? Quando trocamos de papéis nesse jogo que jogamos?

- E daí que isso é tudo o que temos - ele diz, na mesma voz calma, triste, firme.

Já me cansei disso. Saio de baixo das cobertas, um exercício que me toma um certo tempo, pois fiquei enredado no lençol no curso de minhas tentativas de me desenredar dele. Após uma curta batalha, saio vitorioso e me ergo, agarrando o lençol contra meu corpo junto com os últimos fragmentos de minha dignidade.

- Então não temos nada - eu digo.

Ele franze o cenho: uma ruga aparece entre suas sobrancelhas e seus lábios se afinam.

Eu o feri. Bom. Ele deve ser ferido. Ele deve sofrer. Ele deve...

Preciso sair daqui. Não consigo me controlar. A raiva está borbulhando bem abaixo da superfície, a ponto de explodir.

Entro no banheiro pisando firme e bato a porta. Mais comportamento infantil, e nem de longe tão satisfatório como deveria ter sido. Lanço um feitiço sobre a fechadura. Ninguém menos do que Albus Dumbledore vai me tirar daqui antes que eu esteja pronto. Dumbledore ou o Lord das Tre...

Fico diante da pia e miro-me no espelho, piscando para afastar a água que joguei sobre meu rosto. Deixo-a escorrer em pequenas gotinhas pelas faces e pelo queixo, depois pelo peito. Jogo mais água sobre meu corpo: sobre os braços e pernas, sobre a barriga, sobre o pênis ereto, que ainda irá me trair se eu o deixar.

Queria que ele batesse à porta e me pedisse para sair, mas parece que ele me conhece bem demais para fazer tal coisa. Ele não vem atrás de mim, negando-me a oportunidade de mandá-lo embora.

Fico em pé no meio do banheiro, pingando, esperando pelo nascer do sol.



O sol fraco de inverno penetra pela janela do diretor. O encontro transcorre já há algum tempo e o tempo todo mantive um olho no mundo lá fora, acompanhando o progresso do sol ao subir mais alto no céu.

Logo, ele chegará ao zênite.

O diretor se senta atrás de sua escrivaninha, observando-nos. Nossas três cadeiras ficam alinhadas diante dele como se fôssemos um trio de alunos mal-comportados aguardando punição. Fico sentado, próximo à janela, afetando uma bela imitação de tédio. Granger está do outro lado, parecendo preocupada e falhando espetacularmente em suas tentativas de escondê-lo. Eu não a teria escolhido para tomar parte nisso, mas a escolha não cabia a mim. Harry Potter a escolheu e não havia mais nada a ser dito. Ele sempre se cerca daqueles em quem mais confia. Isso foi algo que ele aprendeu, pelo menos, embora ainda confie demais nas pessoas. Nesse exato momento, ele está sentado bem na frente de Dumbledore na cadeira entre Granger e eu. No centro das coisas, como sempre. Algumas coisas nunca mudam, não importa quanto tempo passe.

Dumbledore pára de falar e seus olhos descansam sobre o único castiçal ao centro da escrivaninha.

O sol já chegou àquele ponto no céu. O ponto de onde não há mais volta.

Harry se levanta. O diretor também se levanta e sai de trás da escrivaninha. Seu rosto é grave ao apertar o braço de Harry em despedida.

Granger, a seguir. Ela parece esgotada, mas sua voz permanece firme e não há sinal de lágrimas ao se despedir de Harry. Minha avaliação de sua coragem sobe um ponto. Talvez ela tenha sido a escolha certa, afinal. Eles se abraçam com força e ela beija-lhe o rosto antes que ele se afaste.

Olho pela janela antes que ele tenha a oportunidade de se aproximar de mim. Não quero dizer nada a ele. Não há nada a dizer. Gostaria que ele pusesse um fim nisso tudo e saísse.

Ele está parado diante de mim, bloqueando minha visão e olhando-me bem dentro dos olhos. Parece que não serei poupado da lendária determinação de Potter. Era esperar demais, parece.

Busco minha raiva e me agarro a ela com firmeza. Um riso de escárnio ameaça formar-se em meus lábios.

A expressão determinada vacila. Ele está inseguro. De repente, minha raiva me deserta e sou deixado sem armas. Ele está parado ali, tão perto de mim que eu poderia estender a mão e tocá-lo - e ele quer que eu estenda a mão e o toque, disso estou certo.

Tenho a oportunidade de tocá-lo, agora e apenas agora. Poderia estender a mão e sentir sua pele contra a minha sem sequer ter de dar um passo de onde estou. Em cinco minutos a oportunidade será perdida, mas posso fazer isso agora, se escolher. Bem agora.

Ou não. Posso deixar o riso de escárnio se formar e mandá-lo embora, de forma que a sua última lembrança seja semelhante à primeira. Bem, seria pelo menos coerente com a ampla maioria de suas lembranças de mim. Ele poderia ter um conjunto completo.

E o que eu teria? Mais um arrependimento além de todos os outros em minha vida de arrependimentos.

Ele decide por mim e me toma nos braços. Parece perfeito, o corpo dele junto ao meu. Os lábios dele e os meus. As costas dele, fortes e musculosas sob o tecido levemente áspero de suas vestes, sob minhas mãos.

O beijo se prolonga mais e mais. Normalmente sou eu que ponho fim a nossos beijos. Normalmente eu me afasto e deixo-o querendo mais. Não desta vez. Desta vez o beijo é dele. Um presente de despedida, suponho.

Finalmente ele encerra o beijo e se afasta. Percebo, vagamente, Granger nos observando, e a raiva retorna. Seria de pensar que as pessoas não se surpreendessem mais conosco - o fato de que há um "nós" - a esta altura. Com certeza já faz bastante tempo. Será que acham que só porque não houve demonstrações públicas - nenhuma até agora - não houve nada em particular também?

Ele está ali parado diante de mim, imóvel, mas o tempo corre à nossa frente. Ele precisa ir, e logo. De repente, não posso suportar prolongar aquilo nem mais um segundo. Quero que a raiva - preciso que a raiva - me tome, para me dar mais forças. Mas, em vez disso, há um peso oprimindo-me o peito, mais pesado do que o braço dele descansando sobre mim à noite. Abro meus lábios para falar, mas nenhum som escapa. Engulo em seco, e tento outra vez.

- Volte - consigo dizer, em voz baixa. Sai com firmeza, como a ordem que pretende ser em vez do desejo desesperado que em verdade é. Há um minúsculo sorriso nos olhos dele diante de minhas palavras. Ele captou o adendo não dito: "para mim". Volte para mim.

- Volto, sim - ele diz, e fico grato pelas palavras, mesmo que contenham uma promessa vazia. Será a morte dele. Tenho certeza disso, embora nos dias que tenham levado a este momento eu tenha proferido as ficções políticas adequadas sobre o seu retorno triunfal. Uma coisa é expressar falsa esperança em voz alta; fingir para mim mesmo seria a completa loucura.

Ele não irá voltar vivo.

Ele se vira e se afasta de mim em largos passos, sem olhar para trás. A vassoura dele estava apoiada contra a parede o tempo todo e agora vai às suas mãos sob a sua breve ordem: "Accio." Ele estende a mão por sobre a escrivaninha de Dumbledore e agarra o castiçal com a mão livre. Há um leve estalido enquanto ele é transportado para onde precisa estar.

Ele se foi.

Granger me lança um olhar cauteloso, quase simpático, obviamente se perguntando se deve ou não romper o silêncio. Ela parece pensar que dizer algo possa facilitar a situação. A tola garota se aferra à esperança, então. Viro minha cabeça para que ela não tente mais olhar nos meus olhos.

Ele se foi.

Meu rosto dói e percebo que meus dentes estão cerrados. Fecho os olhos por um instante e me concentro em relaxar o maxilar. Leva mais tempo do que eu gostaria de levar para atingir um objetivo simples, e quando a tensão deixa meu rosto, sinto a raiva frustrada borbulhando dentro de mim. É claro. Agora, que não preciso mais, ela volta.

Abruptamente, dou as costas aos outros dois.

- Se não precisa mais de minha presença aqui, Diretor, voltarei à minha sala. - A garota arqueja de leve e lanço-lhe um olhar gelado. - Isto ainda é uma escola, srta. Granger, e eu sou professor. As classes não se ensinam a si mesmas.

Ela olha para mim de novo, agora sem simpatia. Incrédula.

Ótimo. Não terei de suportar a sua pena.

- Diretor? - Volto minha atenção para o velho mago.

- Claro, Severus. A sua classe está esperando. Segundo ano de Hufflepuff, não é?

- Sexto ano de Hufflepuff. E Ravenclaw - corrijo-o, mesmo sabendo que ele sabe tão bem quanto eu. - Bom dia, Diretor. Srta. Granger - acrescento, com o mais breve dos acenos de cabeça, só como polidez.

Retiro-me rápido, sabendo que meu usual rodopiar de vestes não tem o sucesso esperado.

Ele se foi. Ele não voltará vivo.



Os alunos do sexto ano estão esperando por mim quando retorno às masmorras. Para meu aborrecimento, minha entrada na sala não silencia seu tagarelar excitado. Ele continua sob a forma de sussurros sub-reptícios mesmo depois que um manto de desânimo cai sobre a sala quando lhes digo para se prepararem para uma prova não programada. Não estou com a menor vontade de orientar uma aula prática esta tarde - sempre tenho comigo um conjunto de questões para casos de necessidade. Deixe que eles façam o trabalho no meu lugar, pelo menos desta vez.

Ando pela classe por entre fileiras de carteiras, distribuindo as folhas de prova, girando ao redor para olhar feio quando escuto algum sussurro atrás de mim. Prendergast cora e baixa os olhos para a carteira. Transparente demais. Tiro cinco pontos de Hufflepuff, e o rosto dela assume uma cor ainda mais forte. A menina idiota não tem nenhum talento para a dissimulação, o que deveria ser uma razão a mais para obedecer-me completa e infalivelmente em minha aula. Ela balbucia uma pergunta. Mal posso acreditar nos meus ouvidos. Ela está me perguntando se eu estou bem? A audácia faz com que Hufflepuff perca mais cinco pontos. Obviamente aquele distintivo de Prefeito não significa nada para ela. Dumbledore devia pensar duas vezes antes de entregar tais honras nas mãos de idiotas irrecuperáveis, por mais bem intencionados que eles possam ser. Estremeço ao pensar que resta pouco mais do que um ano para forçar algum tipo de habilidade nessa turma antes que eles sejam soltos no mundo incauto. Talvez eu consiga impingir um pouco de bom-senso a força enquanto posso. Só uma Hufflepuff seria tola o bastante para indagar a respeito de minha saúde quando qualquer um pode ver muito bem que estou tão bem quanto em qualquer outro dia.

A prova começa. Finalmente, o silêncio reina, interrompido apenas pelo farfalhar de minhas vestes enquanto faço rondas pela sala, parando de vez em quando para ficar atrás de um aluno e verificar o seu progresso. Em geral, fico apenas até o aluno ou aluna em questão erguer a mão para afrouxar a gola, com nervosismo.

Volto para minha escrivaninha e começo a corrigir a pilha de lições de casa entregues no início da aula. Depois de cinco minutos olhando para o mesmo parágrafo na mesma folha, desisto, aborrecido. Parece que meu poder de concentração não está como deveria estar hoje.

Levanto-me outra vez e circulo, inquieto, durante o resto do tempo da prova.

Todos estão com uma aparência mais do que um pouco cansada e apreensiva quando lhes ordeno que larguem as penas. Mal há tempo de recolher os papéis preenchidos antes que o sino toque. O zumbido de conversa começa de novo antes mesmo que eu tenha saído da sala. Estou imaginando coisas ou alguns deles se voltam para olhar para mim ao saírem? Nunca fizeram isso antes, e não há razão para que o façam agora. Sou exatamente o mesmo de todos os outros dias.

Não, não há razão para que olhem para mim com estranheza. E nenhuma razão especial para que sussurrem o nome "Harry Potter" ao fazê-lo, também.

A próxima classe inclui ainda mais Hufflepuffs. São ainda piores, os terceiranistas. Estão também tagarelando bastante hoje. Será que alguém andou usando um feitiço de tagarelice indevidamente? Ou será apenas que os ventos mudaram e trouxeram uma onda de tagarelice com eles?

Dou-lhes uma prova também. Aquece meu coração ver que eles gostam tanto quanto os alunos do sexto ano gostaram. Não perdi a forma. Não há motivo para ninguém expressar preocupações quanto ao meu bem-estar. Nenhum desses pequenos é tolo o bastante para fazê-lo, mas eles, também, ficam olhando para mim, como se o velho e repulsivo Professor Snape houvesse, de repente, se tornado interessante para eles. Tão interessante quanto Harry Potter.

Fico satisfeito ao vê-los saírem da sala ao final da aula. E agora tenho outra pilha de provas para corrigir.

Estou sentado em minha escrivaninha, ajeitando as provas entregues e a pilha de rolos de lição de casa que acumulei em cada aula sucessiva durante a tarde, quando a última classe do dia entra na sala de aula.

Primeiranistas. Que alegria.

A classe de sextanistas com que comecei a tarde foi bem mal. Os terceiranistas que se seguiram foram igualmente irritantes. Não, esqueça. Os terceiranistas foram ainda mais irritantes, por mais que isso pareça impossível. Mas esses... esses... Esses monstrinhos serão realmente intoleráveis.

Um grupo de pequenos Gryffindors dando risadinhas entra na sala atrás dos demais. Seu tagarelar excitado pára abruptamente quando ergo os olhos e silencio-os com o meu olhar mais aterrorizante.

Mas não antes que sua conversa chegue a meus ouvidos.

Parece que se espalhou pela escola o boato de que algo de importante deverá acontecer hoje. Algo importante envolvendo Harry Potter... e o professor Snape. Eles não deveriam saber nada sobre isso, mas é claro que sabem. Meus ombros tremem em melancólico humor diante da idéia de que eu possa ter pensado ser possível guardar um segredo nesta escola, que é famosa por deixar os boatos vazarem como uma peneira. Não importa se eles sabem os detalhes da missão ou sobre qualquer outra coisa que envolva nós dois; basta que tenhamos sido notados o suficiente para que os rumores comecem.

Fecho os olhos contra a derrota da esperança. A única possibilidade para ele jaz no absoluto segredo da missão. O frio me envolve por dentro. Muitas vezes fui acusado de parecer frio; agora meu âmago está frio, para combinar com a aparência externa.

Meus olhos se escancaram e fulmino a classe toda com eles. Após uma noite mal dormida, uma manhã gasta em dar os toques finais em uma estratégia de guerra e uma tarde cheia de Hufflepuffs, agora tenho o puro prazer de terminar o dia na companhia de uma classe de primeiro ano de Slytherins e Gryffindors combinados.

Tenho uma prova pronta para eles, mas mudo de idéia ao estender a mão para pegar os papéis. Descubro que cansei da inatividade que acompanha a supervisão de uma prova. Ela me deixa com tempo demais para pensar. Dou-lhes a aula prática que havia preparado, em vez disso.

Programei uma simples poção encolhedora para a classe. Apenas habilidades mínimas são requeridas para se obter uma razoável aproximação de um resultado aceitável. Melhor assim, considerando a falta de aplicação nas fileiras de Gryffindor. Sempre se pode confiar em um Gryffindor para estragar uma missão simples.

O gelo chega ao máximo dentro de mim e encaro-os com frieza. A maioria dos Gryffindors ainda está retirando seu material de escrita das mochilas. Vou ensinar-lhes a não ficarem embromando, perdendo tempo.

- Hoje iremos preparar poções encolhedoras. Abram a página 79 de seus livros. - O gelo penetrou em minha voz, também, tornando-a ainda mais ameaçadora do que o habitual na classe.

Até os Slytherins olham para mim. Alguns Gryffindors erguem os olhos das mochilas e ficam boquiabertos. Por alguma razão, parecem ainda mais estúpidos do que o normal hoje.

- Já! - eu vocifero. Mochilas caem ao chão e páginas voam enquanto eles se apressam a me obedecer. Uma dupla de Gryffindors não é rápida o bastante e Gryffindor perde dez pontos antes que um minuto se tenha passado.

Quase todos os ingredientes necessários podem ser tirados diretamente de seus kits de poções. Busco as barbatanas dorsais secas de peixe-sapo no armário e entrego a eles. Antes que muitos minutos tenham se passado, os caldeirões estão no fogo e os alunos começam o processo simples de picar os ingredientes. Pelo menos é isso o que se espera que aconteça.

Há um guincho de horror vindo dos fundos da classe. Uma menina Gryffindor loira, baixinha - Attwood? - conseguiu derrubar todas as suas barbatanas de peixe-sapo, inteiras, no caldeirão. Encaminho-me até lá e inspeciono o conteúdo. Como eu esperava, a poção adquiriu um tom roxo turvo, e a consistência de uma sopa de ervilha muito densa. Ela acabou preparando uma poção para fazer crescer verrugas. Maravilha. Quase cedo à tentação de fazê-la tomá-la. Talvez uma ou duas verrugas grandes na ponta do nariz - e em vários outros lugares - agissem como um lembrete para que ela usasse os ouvidos da próxima vez e escutasse o que se lhe diz. Duvido que mesmo isso funcionasse. Um caso perdido. Também, o que se pode esperar de Gryffindors?

O gelo contrai meu peito.

É claro que, nesse momento, outro inútil derruba um caldeirão e seu conteúdo se espalha pelo chão. Incrível. Dois acidentes com poucos minutos de intervalo. Deve ser quase um recorde, mesmo para os Gryffindors. Estanco o fluxo da poção no chão com um simples feitiço estancador e depois me viro, estreitando meus olhos em busca do culpado. Ou culpados. O caldeirão pertence a d'Ascoyne, um Slytherin, mas desconfio que existe a mão de um Gryffindor nisso. É claro, minha exigência de que me contem a identidade do responsável é respondida com o silêncio. Sorrio lugubremente quando meu pronunciamento subseqüente de que todos os ocupantes das carteiras vizinhas deverão ajudar na limpeza é recebido com gemidos de desalento.

Há um rumor sinistro vindo do outro lado da sala e um berro de "Professor Snape!" bem antes que outro caldeirão lance todo o seu conteúdo ao teto.

- Saiam do caminho! Já! - eu lhes ordeno. Eles parecem completamente alheios ao perigo. A poção encolhedora já está pingando do teto. Parece ser bastante potente: uma faca de descascar e um livro escolar em miniatura jazem lado a lado sobre a escrivaninha no local mais próximo à explosão.

Não acredito. É um recorde! Nem mesmo Weasley e... Nenhum outro Gryffindor, nenhum outro aluno, em todos os anos em que lecionei em Hogwarts já conseguiu provocar três calamidades em uma sucessão tão rápida. Esta é uma classe cheia de imbecis incorrigíveis, idiotas cujo progresso será alimentado durante os anos em que irão cursar esta escola, só para que tudo se perca no fim, quando eles sairão para o mundo e serão mortos porque não escutam.

Viro-me para o desafortunado par responsável. Uma dupla de Neville Longbottoms contemporâneos. Especialmente o da direita, o dono do caldeirão, embora ele não se pareça muito com Longbottom. É mais baixo e menos corpulento, e seus cabelos são bem mais escuros. Não, ele não me lembra Longbottom.

- O que pensa que está fazendo? - eu exijo saber. Para a minha surpresa, as palavras saem gritadas, em uma torrente acalorada. Não sei bem o que aconteceu com a indagação gelada, sarcástica que eu havia planejado.

O menino me fita, olhos arregalados pelo choque. Menino inútil. Um Gryffindor, é claro. Inútil, incorrigível menino vivo. Por que ele se encolhe desse jeito? Se apenas ele me escutasse, as coisas seriam diferentes.

- Não vou deixar que polua a minha visão por mais um segundo sequer - eu rosno. - Saia desta classe. Já!

As crianças ofegam. Criaturas estúpidas, preguiçosas. Contentes porque os outros as mantêm seguras.

Oh, eu o pego pela gola. Conveniente. Arrasto-o para a porta. Estou pronto a abrir a porta e a lançá-lo no corredor, mas quando estendo a mão para o trinco descubro que ele, também, não me obedece. Permanece teimosamente trancado.

Olho para baixo e noto que minhas mãos estão tremendo.

Abandono a idéia de abrir a porta com a mão e pego minha varinha. Recuo alguns passos e ordeno à porta que se abra. Meu berro de "Alohomora" detona a porta. Literalmente. Os pedaços da porta estão espalhados junto à entrada agora vazia.

Olho para a porta quebrada. Será preciso substituí-la. E o chão e o teto da masmorra exigirão uma limpeza demorada. Não parece haver sentido em continuar essa aula. O melhor a fazer seria me livrar de toda a classe de imediato, antes que qualquer outra coisa possa ocorrer para tornar completa a destruição da sala de aula. Digo exatamente isso a eles.

- Fora! - Gesticulo com a cabeça na direção da porta, para dar ênfase à ordem.

Estendo a mão para o garoto ao meu lado, como que para expulsá-lo à força. Entretanto, parece que, em algum ponto dos acontecimentos, larguei a gola dele e ele correu para longe do meu alcance. Não importa. Fico do lado da saída, esperando que ele e seus colegas obedeçam às minhas ordens e saiam o mais rápido que podem.

A sala está mortalmente quieta e ninguém se mexe nem faz nenhum ruído. Os pestinhas ainda estão ali, em pé, olhando para mim, de vez em quando piscando para provar que estão, na verdade, vivos.

- Pensei que houvesse dito a todos para saírem? Quantas vezes preciso dizer? Será que são incapazes de obedecer à mais simples das instruções?

Eles ficam olhando para mim. Por que não conseguem seguir uma ordem direta? Se apenas tivessem um pouco de bom-senso, não haveria necessidade de nada disso.

Com o canto do olho, capto um leve movimento no corredor. Dou um giro e vejo o diretor em pé à entrada.

- Ah, Severus - diz ele, caminhando calmamente por sobre os destroços como se nada estivesse fora de ordem. Como se fosse um dia normal. - Achei que o encontraria aqui.

- E onde mais esperaria me encontrar a essa hora do dia, Diretor? - replico por entre dentes cerrados. Não agora, Albus. Nada de jogos. Não agora. - Será que tenho a permissão de saber por que escolheu fazer uma visita às masmorras esta tarde?

- Será que posso conversar com você em particular, Severus?

Ele segue o seu hábito de responder uma pergunta com outra pergunta, e de repente seu rosto se torna grave. Eu sei o que ele quer dizer. Eu não quero ouvir. Não posso evitar. Eu já sei. Por que preciso ouvir as palavras confirmando?

- Acho que seria melhor se tivéssemos essa conversa em outro lugar - ele continua. Ele dá uma leve ênfase às últimas palavras, mas não tenho certeza exatamente do quê ele está querendo dizer. - Esta classe está dispensada esta tarde - ele acrescenta, elevando um pouco a voz e dirigindo-se à classe antes que eu tenha tempo de sequer abrir a boca. - Por favor, peguem suas coisas e saiam em silêncio. - Os alunos obedecem de pronto a Albus Dumbledore, apesar de terem passado uma aula inteira sem fazer nada além de provarem que são incapazes de seguirem as minhas ordens. Dumbledore e eu seguimos as crianças que saem da classe. No caminho, o diretor nota as manchas de poção no chão e no teto. Com duas palavras, a sala fica impecável, como se nenhum acidente houvesse ocorrido. - Preciso me lembrar de pedir a Filch que substitua a porta - comenta ele, de passagem.

- Onde estamos indo? - Minha voz é áspera. Não estou disposto a ficar enfeitando fatos desagradáveis em amenidades, como se isso os fosse tornar mais fáceis de suportar. Prefiro a simples verdade sem verniz se preciso mesmo enfrentá-la.

- Espere até chegarmos lá - ele diz, olhando para as paredes de um modo que ele, obviamente, considera sugestivo. Tenho vontade de bater nele. Não me importa que ele pense que esse lugar seja público demais para tal conversa. Quero uma resposta agora. Mas eu o sigo, ainda assim.

Subimos as escadarias uma por uma. É uma longa subida desde minhas masmorras. Pela primeira vez as escadarias não demonstram a sua costumeira rebeldia. É como se soubessem que essa excursão em particular é lúgubre demais para uma travessura bem-humorada.

A subida - e a espera para fazer a pergunta que me queima os lábios - parece interminável. Estamos quase na metade da terceira escadaria quando descubro que não posso esperar mais.

- Como ele morreu? - Forço as palavras a passarem pelos meus lábios secos. Tenho de saber, pelo menos em linhas gerais, senão em detalhe. Não quero saber; escutar a resposta a tornará real.

Mas tenho de saber.

Dumbledore pára nos degraus. Eu também. Espero que ele fale.

- Eu teria preferido que deixássemos essa conversa para quando chegássemos a nosso destino. Entretanto, tal pergunta exige uma resposta imediata.

A expressão dele está ainda mais grave do que quando ele estava em minha classe.

- Severus, você está incorrendo em um equívoco - diz ele, em tom curiosamente gentil. - Harry está vivo.

Olho para ele. Suas palavras não fazem sentido. Ele me diz algo mais, embora eu não compreenda as palavras que ele emprega. O jargão do velho é incompreensível.

Agarro-me ao corrimão, sustentando-me em pé com um considerável esforço antes de abandonar a luta e deixar-me tombar sentado sobre um degrau. Não consigo dizer palavra. Minha garganta está cerrada e pareço virar a cabeça de um lado para o outro. Dumbledore está agachado a meu lado e se inclina sobre mim por um instante. Ele não tenta dizer mais nenhum absurdo, mas me puxa para frente de leve e sua palma bate firme em minhas costas. Um pensamento desgarrado, o de que ele é surpreendentemente forte, cruza minha mente e se esvai quando começo a sufocar devido à constrição em minha garganta. Tenho um acesso de tosse que termina em uma longa respiração que soa como um soluço. Pelo menos poderia soar como um soluço para alguém que não soubesse das coisas. Felizmente, o diretor sabe, assim como eu.

Harry está vivo.

- Onde ele está? - eu despejo, aborrecido por não ter feito essa pergunta de imediato.

- Aqui no castelo. Na ala hospitalar. Que é para onde estamos indo, na verdade. - Ele me ajuda a levantar antes que eu perceba o que está fazendo; não estou tão mal assim que precise de ajuda para levantar, principalmente de um homem cem anos mais velho do que eu. - Não é preciso subir correndo até a ala hospitalar - ele diz, adivinhando corretamente minhas intenções. - Não chegará mais rápido se fizer isso. De todo modo, preciso conversar com você antes que o veja. Severus - a voz dele fica mais dura ao dizer meu nome, e olho para ele com severidade. - Ele está vivo, mas não está em perfeitas condições.

Proíbo minha garganta de se fechar de novo e, para meu alívio, ela me obedece.

- Quão não perfeitas são as suas condições, exatamente? - pergunto, com cuidado.

- Ele parece incólume. Não parece haver sequer uma marca em seu corpo.

- Mas...? - eu o pressiono.

- Está inconsciente, exatamente como o encontramos. Nada que tenhamos tentado até agora o fez despertar. Ele parece... Mas venha, você verá por si mesmo. - E ele recomeça a subir as escadas.

Harry está vivo. As palavras repetem estupidamente em minha cabeça enquanto continuamos a subir os intermináveis lances de escada até a ala hospitalar.


 

Deixam-me a sós com ele. Não há motivo para que não o façam. Não há nada que possam fazer a não ser que ele desperte. Além disso, eu conheço, melhor do que ninguém mais no castelo, o que fizeram com ele. A exposição repetida a certas magias negras tem todo tipo de conseqüência, e Harry tem enfrentado tais magias com uma regularidade doentia desde a infância. Depois de suportar tudo isso, é de se admirar que, depois do golpe final e bem-sucedido, ele esteja perdido para nós, mentalmente, se não em fisicamente?

Ali está ele, sem marcas, aparentemente sem ferimentos, exatamente como Dumbledore disse. Sua mão é gelada ao toque quanto eu a tomo entre as minhas. Ele está pálido e frio como a morte. Apenas o quase imperceptível erguer e abaixar do peito revela a mentira do quadro.

Passo a mão sobre seu braço. Sinto o frio em sua pele aqui, também. Rápido, tiro minhas vestes e meus sapatos. Afasto as cobertas e entro sob elas a seu lado. Tomo-o nos braços como se para compartilhar o calor de meu corpo com ele. As costas dele se encaixam em meu corpo com a mesma facilidade de sempre. Minha mão desliza por baixo da camisa de seu pijama e sinto-lhe o bater lento e constante do coração contra minha palma.

Harry está vivo. As palavras ecoam em minha cabeça.



Já passa da meia-noite. Há várias horas estou aqui, devolvendo-lhe o calor ao corpo. Estamos a sós, embora Dumbledore tenha entrado e saído diversas vezes. Granger, também. Ninguém mais sabe onde estamos, exceto Pomfrey, e ela não irá retornar antes da manhã. O mundo se retirou para a noite e apenas ele e eu ficamos.

Ele se mexe junto a mim. Afrouxo o abraço e espero para ver o que acontecerá a seguir. Ele murmura algo baixinho e tenta se libertar de mim. Eu o solto completamente, e ele rola, deitando de costas. Seus olhos piscam e se abrem, e ele os ergue para mim, sorrindo sob a luz suave da lamparina.

Harry está vivo. Finalmente as palavras fazem sentido.

- Gosto quando você fica na cama comigo.

Fico um tanto perplexo. Essas não são exatamente as primeiras palavras que esperaria escutar de um herói que acaba de voltar dos mortos. Mas não deveria me surpreender. Que típico de Potter, proferir o primeiro pensamento que vem à sua tola mente.

Olhos verdes brilhantes levemente desfocados continuam a me encarar, sonolentos. Em expectativa. Talvez esteja esperando que eu diga que gosto de estar na cama com ele também, ou alguma outra resposta estupidamente sentimental?

- Você voltou - eu digo, em vez disso. Oh, brilhante. Agora sou eu que digo a primeira coisa que me vem à cabeça.

- Você me disse para voltar - replica ele.

- Já era tempo de aprender a obedecer às minhas ordens. - O chiste vem automaticamente aos meus lábios, mas enquanto falo uma de minhas mãos sai de baixo das cobertas para acariciar-lhe a face com delicadeza.

Há um roçar igualmente delicado de lábios contra os meus, e então ele enterra a cabeça sob meu ombro. Em poucos instantes, adormece outra vez.

Fico deitado ali por um longo tempo, sem me mexer. Vejo-o dormir, suas pálpebras vibrando ocasionalmente em meio aos sonhos. Escuto-o respirar com suavidade, ritmicamente. Sinto o calor vivo da pele dele contra a minha.

Finalmente, puxo-o para perto e passo um braço protetor em torno dele. Eu o deixarei ali até que ele acorde outra vez.

Vamos ver como ele vai se sentir ao acordar com o peso do meu braço sobre ele, não é?

 

Fim

* Nota: O trocadilho do título ("Disarmed" pode ser também "sem braço") é intraduzível.

 

O original desta história, em inglês, Disarmed, pode ser lido em http://luthien.ebonyx.org/docs/fic/index.html