Sapos e Lesmas e Rabos de Cachorrinho*
Autora: Llama

 

- Seu nariz está no caminho, Severus.

Severus Snape ergueu a cabeça devagar e franziu o cenho para o minúsculo professor de Feitiços que o rondava, perto demais de seu braço esquerdo.

- Ora, me desculpe. Eu estava com a impressão de que este jornal era meu.

- Bobagem todos nós comprarmos o mesmo, não é? - cantarolou Flitwick, sem se perturbar. - Compartilhar é preciso, Severus.

- O dia em que você pagar por alguma coisa será o dia em que eles o enterrarão lá dentro.

Snape largou seu Profeta Diário sobre a mesa e se levantou abruptamente.

- Acabou de ler, então? - Flitwick arrebatou o jornal alegremente e examinou mais de perto o especial do Dia dos Namorados com tangas em forma de coração que desapareciam, cantarolando em apreciação.

- Tenho coisas a fazer hoje.

- Ah sim, hoje é o seu dia de folga especial. Vou substituir Harry nas aulas dele, você sabe. - Ele fez uma pausa, coçando o nariz com um longo dedo. - Todos nós nos perguntamos, sabe… todos esses anos...

A expressão no rosto de Snape o fez estancar.

- Se quer fofoca, leia no jornal. A minha vida não é da conta de ninguém.

Snape deixou a porta da sala dos professores bater atrás de si e seguiu ao longo dos corredores rumo aos aposentos do professor de Defesa. Como sempre naquele dia do ano, ele sabia que Harry estaria esperando por ele, apesar de nenhum acerto formal ter sido estabelecido, nem mesmo verbalmente. Era tradição agora. Todos os anos, Snape batia à porta do lado oposto do corredor em relação aos seus aposentos e o dia de trégua se iniciava. Depois eles voltavam às suas vidas separadas, embora talvez com um pouco menos de animosidade a cada vez.

Snape fazia o possível para ignorar os estupidamente perturbadores balões em forma de coração e os pássaros cantantes que assolavam os corredores. Todos os anos havia sido igual - exceto em um. Atravessando rápido o Grande Salão, lembrou-se nitidamente demais da cena de cinco anos atrás. A cena que realizara o que nada mais poderia ter conseguido - desencadeara a cessação anual de hostilidades entre ele e o garoto mais irritante que já colocara os pés naquela escola.

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Era o Dia dos Namorados, mas era muito mais do que isso.

Fazia três anos e oito meses desde a segunda e final derrota de Voldemort.

Fazia dezoito meses que Harry Potter finalmente cedera e se tornara Professor of Defesa Contra as Artes das Trevas em Hogwarts.

Fazia um ano desde o mais celebrado casamento a que o mundo mágico já assistira, quando o Homem Que Derrotou Voldemort se casara com Hermione "por que eu deveria mudar meu nome" Granger.

Mas o que era mais importante naquele caso, fazia apenas seis semanas desde o funeral mais badalado desde o de Albus Dumbledore. Hermione havia sido o segundo rosto mais conhecido entre os jovens membros da Ordem, mesmo antes do casamento.

Três anos e meio de paz e reconstrução, refletiu Snape, e eles haviam começado a relaxar.
Haviam, de certa forma, começado a deixar a incerteza e a possibilidade de uma morte iminente de lado e começado a viver de verdade. Bem, talvez não ele; ele era velho demais para mudar agora, mas os mais jovens, aqueles cujas vidas haviam sido tão ofuscadas e que tinham tão pouca culpa disso. Fora um golpe cruel o fato de que um dos que conseguira sobreviver àqueles horrores tivesse perdido a vida por algo tão casual quanto um carro em alta velocidade.

E lá estava ele, vendo um homem baixo, de cabelos negros, em pé, um tanto inseguro, em meio às crianças tagarelas e suas memórias curtas da juventude. Elas se separavam e se juntavam, fluindo ao redor e além dele como se ele fosse uma pedra colocada em um local inconveniente - um obstáculo natural que a pura força da maioria podia ignorar. Parecia ter criado raízes ali, os olhos seguindo distraidamente um balão vermelho que se soltara dos pilares decorados e abria caminho rumo ao teto por uma rota sinuosa.

Era realmente muito irritante.

Snape esperou que o último dos vadios do Grande Salão se fosse antes de dar um giro e passar pela figura perdida.

- Potter, venha comigo.

Levou um instante até que o olhar se dirigisse devagar até o saguão outra vez, e a essa altura Snape já estava vários passos elegantes à frente na direção das masmorras. Quando não escutou som de passos seguindo-o, virou-se e fulminou o confuso jovem com os olhos.

- Potter!

Potter deu alguns passos incertos para frente, a voz imperiosa operando em um tipo de nível automático para superar sua inércia. Então pareceu perceber o que estava fazendo.

- O que você quer, Snape? - Sua voz ainda era apática, desinteressada, mas uma ruga surgiu sob a franja desalinhada.

Severus retornou alguns passos.

- Preciso de auxílio. De preferência, auxílio competente, mas vou ter de me contentar com o seu. - Notou a volta de alguma cor ao rosto franzido diante de seu tom ácido.

- Não estou aqui como seu assistente.

Um toque da velha desobediência. Mas não o bastante; muito longe disso.

Snape se inclinou para frente, estreitando os olhos e torcendo os lábios em seu esgar mais intimidador.

- Hoje você está, Potter.

Harry apenas o encarou fixamente por um instante.

- Está bem. Vá lá.

E enquanto ele se esforçava para acompanhar os longos passos de Snape, que retomara seu progresso apressado rumo às masmorras, acabou ocorrendo ao garoto fazer uma pergunta das mais importantes.

- Onde estamos indo?

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- Travessa do Tranco.

O flu levou Snape suavemente, e ele apertou suas vestes contra si com firmeza, a capa sobre a cabeça devido a uma má experiência, protegendo o rosto da fuligem que sempre acompanhava aquela abominável forma de transporte.

Saiu para fora da lareira ao final da jornada com toda a elegância que lhe foi possível. Pela primeira vez nos cinco anos que fizera aquela viagem com Potter, ele não parecia ter aterrissado em meio a um desastre. O ano anterior havia sido o pior de todos: ele tivera o pé esmagado pela chegada quase simultânea de uma bruxa enorme com suspeitas quantidades de pêlos acima do lábio. Mancara durante semanas depois do incidente.

Quando Harry chegou, em estilo não tão elegante, Snape, em silêncio, estendeu-lhe a mão para ajudá-lo a firmar-se. Não houve surpresa da parte de Harry; em seu dia de trégua sempre havia cortesia, senão até mesmo amizade. O rosto de Snape se mantinha impassível ao soltar a mão do colega, percebendo um olhar nervoso, mas não fazendo nenhum comentário. Franziu um pouco a sobrancelha; desde quando Potter ficava nervoso com alguma coisa?

A sala em que emergiram estava em ruínas; as paredes nuas de pedra cobertas com tapeçarias comidas pelas traças. Snape andou devagar até a tapeçaria de uma árvore, seus galhos vergados pela vida na forma de pássaros, pequenas criaturas, folhas e frutos. Afastando-a para um lado, gesticulou para Harry antes de segui-lo para dentro da atmosfera mofada da Botica Rast & Jant.

- O que tem na lista?

Snape não se apressou a responder, preferindo observar Harry caminhando devagar entre as prateleiras, os olhos arregalados como um menino de dez anos de idade diante dos potes escuros e empoeirados, as garrafas cuidadosamente rotuladas e os tanques contendo estranhas criaturas viscosas que Snape tinha certeza de que o garoto não reconhecia.

Quando Harry se virou para falar de novo, ele pegou a lista.

- Ahn... Cinqüenta gramas de cérebros de sapo. Um frasco de suco de lesma, grande. - Ergueu os olhos ao escutar um leve pigarreio. - Há algo de engraçado a respeito dos ingredientes para as minhas poções, sr, Potter?

- Sapos e lesmas e rabos de cachorrinhos. - O irritante garoto parecia muito orgulhoso de sua declaração desconcertante.

Snape só ficou olhando fixo para ele.

- É um versinho. Algo como "De que são feitos os garotinhos? Sapos e lesmas e rabos de cachorrinhos". - Fez uma cara envergonhada. . - Desculpe. Eu sempre penso nesses versinhos quando a gente vem aqui e você... desculpe.

- Não precisa pedir desculpas. Eu só fiquei me perguntando como é que você havia descoberto o próximo item da lista. - Snape tirou rápido o papel do alcance das mãos que tentavam agarrá-lo, virando-se com um farfalhar das vestes para seguir todo empertigado rumo à próxima fileira de prateleiras.

Escutou o riso agudo de Harry, mas os passos não se seguiram de imediato, e Snape sabia que era porque ele estava observando cuidadosamente as cobras em conserva - só para ter certeza de que eram mesmo cobras e não rabos de cachorrinho. Viu o garoto abrir caminho devagar pela loja, movendo-se de modo a poder observá-lo veladamente. Não era a primeira vez que o garoto rira em suas viagens, mas naquele dia parecia não haver nenhum toque de culpa ou vergonha ligada a isso. Já era tempo.

Snape deixou que Harry pegasse a lista e procurasse os outros itens enquanto ele pechinchava com o sr. Rast o preço dos cérebros de sapo.

- Figos da Abissínia em conserva ou secos?

- Secos, a não ser que eles tenham...

- Manchas nas folhas, eu sei.

Então ele havia aprendido algo. Snape conteve o sorriso; não ajudaria em nada as suas negociações se parecesse estar de bom humor. Retomou seu catálogo de insultos quanto à qualidade dos cérebros de sapo do sr. Rast com renovado vigor, para garantir.

Saindo da Botica com as compras cuidadosamente barganhadas, seus passos se viraram em sincronia ao chegar à próxima parada. Acrescentada ao itinerário desde a segunda viagem anual, Capas & Lombadas era a menos condenável de várias livrarias no beco, embora um tanto careira.

- Tente não ser explorado demais desta vez, Potter. - Snape automaticamente pegou os pacotes que Harry vinha carregando desde a Botica e o viu seguir ansiosamente para as prateleiras emboloradas que ele adorava. - Faz mal para a minha reputação ser visto com um perdulário.

Não havia maldade em seu tom, o que deveria ter causado um estrago suficiente para a sua reputação, mas ele não se importava. Iria, como sempre, ter de ser duas vezes mais difícil na sua próxima visita. Doze meses era mais do que tempo para restaurar o terror de qualquer lojista diante da chegada de Severus Snape em sua humilde espelunca. Aquilo lhe dava a oportunidade de antegozar os momentos por vir.

Olhou de soslaio para dois títulos bombásticos que gritavam das prateleiras - felizmente não literalmente - e andou passo a passo até o lugar onde Harry construía uma pequena pilha de livros candidatos a uma possível compra.

- O que acha deste para os alunos do sétimo ano? Alguns deles têm me pedido leituras extra. Um deles já leu toda a biblioteca, creio. Pensei que só Hermione conseguiria fazer isso. - Passou uma cópia usada do "Antimagia Avançada", de Judas Bendle, para Snape examinar.

Snape ergueu os olhos. Harry raramente mencionava Hermione e especialmente não ali, embora ele houvesse, de propósito, evitado livrarias em sua primeira visita. Os olhos de Harry eram sinceros e límpidos, todavia; nada de melancolia ali, só lembranças felizes. Snape relaxou um pouco e folheou o livro.

- Ahn... Um tanto ultrapassado, mas você pode recomendá-lo para os interessados em quebras de feitiços. O outro livro dele, "Defesas Ofensivas", é de uso mais geral, se eles tiverem aqui.

- Este aqui? - Harry passou-lhe outro livro.

- Esse mesmo. - Snape pegou-o com cuidado, verificando a capa com desconfiança. - Não está em boas condições, no entanto. Não deixe de pedir um desconto por causa disso. - Abriu a capa e bufou diante do preço. Harry apenas sorriu e pegou o livro dele, acrescentando-o à pilha crescente.

Snape vistoriou os livros que Harry escolhera, reconhecendo, contra a vontade, que o garoto sabia o que estava fazendo. Ergueu os olhos quando Harry deu uma pequena exclamação de triunfo diante de algo que encontrara na prateleira.

- A História das Piores Artes e Práticas das Trevas: Volume 4. - Sorriu. - Acha que eles adquiriram especialmente para mim?

- Duvido. - Snape achava mesmo curioso que, em cada visita à loja, como que por magia, eles encontravam o próximo volume da série de Artes das Trevas que Harry começara a colecionar depois de descobrir o primeiro daqueles tesouros quatro anos antes. É claro que, com mais quatorze volumes por lançar, eles teriam de voltar lá ainda várias vezes. A idéia não era completamente repulsiva, pensou.

- Você devia lê-los, sabia? São muito bons.

- Baboseiras melodramáticas. - Snape preparou-se, com uma alegria cuidadosamente disfarçada, para a discussão de sempre.

- Documento histórico valioso.

- Pura fantasia, escrita por um ermitão sexualmente reprimido com um talento mínimo para o desenho e uma pobre compreensão da anatomia humana. - Snape permitiu-se entrar em mais detalhes do que o usual em sua zombaria. Sentiu-se até bastante satisfeito com aquela descrição.

- Então você deu uma olhada nos livros? - O sorriso de Harry era insuportavelmente orgulhoso.

De repente, Snape se viu atraído por um texto bastante interessante a respeito de poções que ele precisava ir ver lá do outro lado da loja, e deixou Harry e suas pesquisas.

Depois que o garoto gastou uma quantia absurda em suas compras, Snape o levou para fora da lojinha atulhada, de volta à rua. Virou-se para seguir rumo a Borgin & Burkes, a próxima parada no roteiro já bastante trilhado que eles sempre seguiam. Após alguns passos, escutou Harry segui-lo.

- Você sabe, é nosso quinto aniversário.

As palavras de Harry o tomaram de surpresa, e ele precisou de algum tempo para absorvê-las.

- A sua compreensão dos números é atroz. Não admira que gaste tanto dinheiro. - Snape estava se sentindo à beira do abismo; sentia que estava perdendo o pé naquele território emocional que lhe era desconhecido. O que ele fazia era distrair o garoto, não confortá-lo, ou escutá-lo. Será que não era mais o suficiente?

- O quê?

Snape se voltou para ele, tenso.

- Seria o seu sexto aniversário, não o quinto.

Para a sua surpresa, Harry apenas sorriu.

- Não, eu quis dizer nós.

Se Snape estava se sentindo à beira do abismo antes, agora estava despencando mesmo. Havia um "nós"? Se aquilo não o tivesse enchido com um calor nauseante, ele teria rido. Teria gargalhado ou dado um sorriso sarcástico. Mas não estava fazendo nada disso. Teve a horrível desconfiança de que, na verdade, estava olhando para Harry com cara de idiota.

- Vir aqui todos os anos. Esta é a quinta vez. - O rosto de Harry estava estranhamente concentrado.

Ora, é claro que era. Por que ele tivera de confundir aquilo com palavras emotivas como "aniversário" só para dizer algo perfeitamente simples e óbvio?

- E eu…- Harry fez uma pausa. - Eu nunca disse "obrigado".

Com alívio, Snape sentiu o mundo voltar a seus eixos. Com aquilo ele sabia lidar.

- As suas maneiras sempre foram deploráveis.

Harry sorriu palidamente.

- Estou falando sério. Levar-me para longe de tudo nesse dia, todos os anos... Só saber que alguém pensou em fazer isso… bem, ajudou de verdade.

E lá ia ele de novo. Snape desejava que Harry não esperasse que ele sorrisse ou dissesse algo agradável. Tentou encontrar algo mordaz e inteligente para dizer, mas as palavras pareciam tê-lo desertado. Por que o garoto tinha de ter descoberto o conceito de gratidão agora, entre todos os tempos? Logo eles poderiam voltar e tolerar um ao outro por mais um ano como sempre haviam feito, mas Harry ia mudar as coisas, com toda aquela… conversa.

- Tanto que eu acho que estou pronto para tentar um novo relacionamento. - Deu de ombros. - Se eu encontrar alguém, é claro. Acho que Hermione não iria se importar. E você?

De repente, Snape achou difícil até falar; sentiu a garganta apertada. Obviamente era bom que o garoto tivesse superado a dor e, ainda aos 27 anos, é claro que acabaria encontrando outra pessoa, mas… ele iria sentir saudade daqueles dias fora do castelo com uma companhia mais do que imbecil. Não, aquilo era injusto: em boa companhia. Podia ser só um dia por ano, mas, de alguma forma, tornava todos os outros 364 dias mais suportáveis. Velho estúpido e idiota que ele era.

- Não - conseguiu grunhir, enfim. - Não acho que ela se importaria.

Por um instante, ele pensou que Harry fosse falar de novo, mas, em vez disso, virou-se e começou a abrir caminho até o fim do estreito beco, ignorando as observações vulgares e propostas obscenas que eram lugar comum naquelas ruas escuras. Snape seguiu atrás dele, com o medo revirando seu estômago ao digerir as palavras de Harry.

Harry não precisava mais de sua ajuda, era o que estava dizendo.

Estava bem atrás de Harry quando, finalmente, chegou ao final da Travessa do Tranco. Além da esquina que virava subitamente para a direita, ficava o ensolarado e aberto Beco Diagonal, cheio de casais e crianças tagarelando, enfeitado com balões, laços, milhares de objetos em forma de coração, todos…

- Açúcar e perfume e tudo o que é bom - murmurou Harry, dando um passo para dentro da faixa de sol mais próxima, a rua subitamente livre dos telhados salientes e sacadas tortas.

Por um instante ele parecia fora de lugar, tão perdido quanto naquele dia em que a multidão se apinhava ao redor dele no Grande Salão. Então ele se virou, e sorriu; um sorriso de verdade, o sol refletindo nos famosos óculos e esquentando-lhe os olhos.

- Tudo bem - ele disse. - Mas, Severus… acho que não é isso o que eu quero de verdade.

Snape conteve a respiração e Harry andou em sua direção. O sorriso ainda em seus lábios trazia consigo o sol para o lúgubre canto do beco. Harry parou bem diante dele, inclinando-se para largar os pacotes no chão. Quando pegou delicadamente o embrulho de Snape com ingredientes de poções e os depositou ao lado de seus livros, Snape inspirou o ar de forma entrecortada, devagar, querendo que seu coração parasse de disparar. Pelo amor de Deus, ele não era um adolescente apaixonado.

Ainda estava repreendendo a si mesmo quando Harry, devagar, o empurrou contra a parede, estudando-lhe o rosto por um momento, antes de passar uma das mãos sobre o maxilar incerto, um polegar acompanhando o lábio inferior, e subindo pela maçã do rosto, saliente demais. A outra mão insinuou dedos por entre um punhado oleoso de cabelos, descansando contra a parede e prendendo-lhe a cabeça contra os tijolos.

- Acho… acho que é isso o que eu quero.

A voz era ofegante, mas de modo algum insegura. Os olhos de Snape se desviaram do beco para a mão que lhe segurava o rosto, para os olhos crivados de perguntas, para a boca que se aproximava lenta, oh tão lentamente de seu rosto. Fechou os olhos e deixou acontecer.

O primeiro roçar de lábios nos seus foi leve; uma suave pressão provocante que o lembrava dos beijos da juventude, que haviam sido tão poucos. Era demais e muito pouco ao mesmo tempo, e ele descobriu que estava indo atrás da boca que se afastava dele cedo demais. Por favor, que tenha mais, e teve, um ataque mais confiante dessa vez, e ele até se lembrou de abrir os lábios um instante depois da chocante compreensão de que Harry o estava beijando.

Era a suavidade, ele pensou, quando sua mão se ergueu para descansar na nuca de Harry, os dedos mergulhando nos cabelos revoltos. Sua boca era toda suavidade e lábios cheios, e lábios não deviam ser tão deliciosos; não deviam fazê-lo ansiar por mais, fazer ele, um homem adulto, beijar desesperadamente em um beco como um adolescente distraído. Aquilo era coisa de fantasias insanas e devaneios ridículos; um mundo enlouquecido.

Mas então, em um mundo são, ele não teria nunca passado a língua delicadamente pelo interior daquela boca, não teria nunca descoberto que ela ainda possuía o sabor infantil da pasta de dente mentolada e que o forçava a se lembrar da juventude do garoto. Apenas a pálida aspereza da barba nascente e o cheiro de uma cara loção pós-barba lhe diziam que estava tudo bem - que aquele era um homem e sabia o que estava fazendo. Em um mundo são, aquele homem não teria fechado a brecha remanescente entre ele e seu mais odiado ex-professor para deslizar um braço possessivo ao redor dele e aproximar seus corpos ainda mais; não estaria, naquele exato instante, gemendo dentro de sua boca enquanto suas vestes se mostravam finas demais para disfarçar os efeitos do contato íntimo sobre ambos.

Sua mão agarrou as vestes de Harry, segurando-o com firmeza enquanto eles se comprimiam um contra o outro. Em algum lugar lá fora, em um mundo que não virara de cabeça para baixo, ele tinha consciência de que a vida cotidiana prosseguia; se escutasse, perceberia o som de pés sobre as pedras do calçamento, o retinir do dinheiro trocando de mãos; sendo aquela a Travessa do Tranco, provavelmente havia alguém roubando os embrulhos empilhados a seus pés.

Que roubassem.

- Devíamos ir para casa. - Harry estava sem fôlego quando afastou, enfim, o rosto corado.

Snape descobriu que não lhe restara fôlego suficiente para falar, então apenas concordou com um gesto brusco de cabeça. Com certeza deviam ir para casa, antes que ele se visse em uma situação horrivelmente embaraçosa.

Harry olhou de esguelha para o homem silencioso a seu lado enquanto atravessavam a Botica para usarem o flu.

- Não esperava por essa, esperava?

Snape recuperou o fôlego e soltou uma risadinha.

- Na verdade, não. Pensei que…

Harry parou na frente da lareira na lúgubre sala dos fundos.

- O que foi que pensou? Que eu ia querer parar de vir aqui com você?

- Eu… Sim.

Harry apenas deu um sorriso travesso.

- De jeito nenhum. Tenho mais quatorze volumes de "A História das Piores Artes e Práticas das Trevas" para comprar naquela maldita loja, e você vai estar lá comigo, todas as vezes.

O gemido sincero de Snape os acompanhou durante todo o caminho de volta para Hogwarts pelo flu.

 

Fim

Nota: Versinhos que deram origem ao título


O original desta história, em inglês, pode ser lido aqui.