Wabi-Sabi
Autora: Kai

 


Por que Harry ama Severus?


 

Mesmo agora, depois de dezessete anos, as pessoas ainda me perguntam por quê. Por que, em vez de alguém atraente, jovem ou bonito, eu escolhi você?

Em geral eu dou de ombros, digo algo como "o amor é cego" e pronto. Não é da conta deles, afinal. Além disso, eu sei que, se você me ouvisse, iria balançar a cabeça, passar os olhos pela minha cicatriz e dizer "com efeito!" em seu tom mais áspero: nós dois sabemos que nosso amor é tudo menos cego.

Os mais persistentes percorrerão a lista de nossos defeitos - o seu nariz, o seu passado, os seus dentes, a sua pentelhice, como que para dizer "Harry, seu idiota, não vê que você merece coisa melhor? Não vê que você tirou o palito mais curto?"

O palito mais curto? Se eles soubessem!

A essa altura, dependendo do meu humor, ou eu contra-ataco com a minha própria lista de qualidades favoritas - a sua voz, as mãos, o jeito como me faz gozar tão forte a ponto de ver estrelas. Ou brinco, de modo sugestivo, com minha varinha e lhes digo, em uma prosa multissilábica, afiada como faca, em estilo Snapiano, para se foderem. Qualquer uma das opções leva a conversa a um encerramento rápido e satisfatório.

A não ser, é claro, que a conversa seja com Sirius Black.

Depois desse tempo todo, ele ainda não entende. Embora, para ser justo, eu nunca tenha tentado explicar isso a ele. Nenhum de nós tentou.

Ele costumava ser mais rude:

- Não entendo, Harry - ele gritava. - Cinco bilhões de pessoas no planeta e você tinha de escolher Snape? Como pode fazer isso comigo? Pensei que você odiasse o canalha seboso, de nariz torto, e também, desde quando você virou gay?

Por sorte, ele se acalmou com o passar dos anos; influência de Remus, sem dúvida. Agora ele em geral apenas pisca e me passa fotos, números de telefone, endereços de Flu das jovens bruxas famosas - ou bruxos, agora que ele se acostumou com "esse negócio de ser gay" - que ele quer que eu conheça.

Ele não aceita você de jeito nenhum, Severus. É claro que você também não ajuda nada. São dois idiotas teimosos, os dois.

Para ser sincero, não quero ter de explicar. Quero que o fato de você ser a minha escolha seja o bastante para ele, para todos. Certamente é o bastante para nossos amigos, por mais confusos e incrédulos que tenham se sentido quando começamos. Hermione guinchou, Ron ficou boquiaberto, Hooch e Minerva pareceram ficar abaladas, e Draco ficou com um certo ciúme, mas todos eles acabaram aceitando. Albus apenas sorriu com serenidade, sem surpresas; tenho certas suspeitas a respeito dele.

No início, eu mesmo não sabia examente por quê. Você era você, eu o queria e, por alguma razão, você também me queria. O resto foi, como diria Hermione, C.Q.D. Bem, talvez não tenha sido fácil, mas, depois das brigas, das batalhas de feitiços e das maravilhosas rodadas de sexo de reconciliação, chegamos lá. Além disso, como descrever os motivos de uma atração, ou de uma paixão?

Então, um dia, quando eu estava encaixotando as coisas no meu apartamento - no fim de semana em que começamos a morar juntos -, eu encontrei a caixa. Era de papelão branco, surrada e desgastada, em péssimo estado, esmagada por baixo de uma pilha de velhos equipamentos de Quadribol. Contive a respiração, abri-a e me lembrei. Naquele instante, eu soube precisamente por quê, pela primeira vez.

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No começo, tudo o que era meu havia sido dele, de Dudley.

O soldadinho de brinquedo, que perdera um braço. Os livros com a lombada desfeita. As roupas rasgadas, ou manchadas, ou puídas. Tudo o que vinha a mim era de segunda mão.

Tio Vernon dizia: "Tome, garoto, Dudley não quer mais isso" e, fosse o que fosse, eu poderia ter... se...

Se Dudley não notasse que eu tinha.

Se ninguém soubesse que eu queria.

Se eu escondesse bem o suficiente.

Se estivesse quebrado, estragado o bastante para que Dudley nunca mais o quisesse de volta.

No fim das contas, era uma linha bastante tênue, aquela.

Quando eu era bem pequeno, ou em dias especiais, como no Natal e nos aniversários, eu esperava, na expectativa de que, daquela vez - daquela maldita vez - eu iria abrir uma caixa alegremente embrulhada e nela encontraria algo novo. Algo com um selo de plástico, direto da fábrica, talvez. Algo que estivesse inteiro e não desbotado, sem arranhões ou pedaços faltando. Mas raramente havia uma caixa para mim, e ela nunca continha algo novo.

Posso não ser Hermione, mas não sou burro. Depois de algum tempo, aprendi a desejar o que podia ter: coisas esquecidas, descartadas, quebradas ou com defeito. Uma revista deixada na varanda da frente, encharcada da chuva da noite anterior. Uma caixa de charutos com um canto esmagado, embaixo de folhas de espinafre murchas, no lixo. Uma pedrinha azul-esverdeada que caíra de muito alto e se quebrara. Uma bola de borracha que brilhava no escuro, com a forma da lua e suas crateras, que, teimosamente, não queria brilhar, por mais que eu a deixasse sob o sol.

Com o tempo eu me tornei um especialista, por assim dizer, em coisas estragadas. Um tanto como Albus, às vezes penso, quando estou em uma daquelas fases de autopiedade.

Começou como mentiras que eu contava a mim mesmo. Do tipo que uma criança inventa para dar forma a um mundo sem esperança. As verdades fugidias que um cara esquisito conta a si mesmo quando quer se sentir menos um cara esquisito, creio.

Ele perdeu o braço porque lutou contra um dragão. Outros dez homens morreram. Este é o único que sobreviveu.

Dessa forma tia Petunia não pode me bater se eu ficar com manchas por causa da grama, pois a roupa já está manchada.

E daí que estão faltando páginas? Agora eu posso inventar meu próprio final.

Mentiras, sim, mas mentiras que ampliavam o mundo para mim, que aguçavam meus olhos. Uma vez que a dor de sempre ser menos se atenuara, vim a apreciar a beleza das coisas defeituosas que adquiri. A mancha de chá em minha camisa tinha a forma exata da África, por exemplo. Podia passar o dia todo, enquanto fazia a limpeza ou cozinhava ou me escondia, imaginando chitas e gazelas correndo livres sobre minhas costelas. A fenda dividia a pedrinha azul-esverdeada da mesma forma que o horizonte separa o céu do mar, e eu fazia um milhão de navios singrarem aquelas ondas vítreas. Cada fenda e lasca e mancha contava uma história, tornava aquele objeto mais, e não menos, importante para mim.

Talvez seja necessário um certo tipo de olho para ver além do óbvio, assim como para encontrar o pomo de ouro. Ou então talvez seja só um caso de igual que atrai o igual. Cada vez mais, você me atraía; nós atraíamos um ao outro.

Talvez o olho e a atração sejam o mesmo.

Algumas noites, após o jantar e o trabalho, eu me sentava no escuro em meu armário trancado. Abria minha caixa, reunia minhas coisas sobre o cobertor pelo toque, e passava os dedos sobre os cantos irregulares, os locais onde os pedaços que faltavam se encaixariam. Memorizava cada buraco e sulco, cada fratura tão fina quanto um fio de cabelo e cicatriz que tornavam este ou aquele objeto sem valor para ninguém exceto para mim. Abraçava todos aqueles objetos, com seus defeitos, e sussurrava "meus, meus, meus!", como se as palavras de um cara esquisito e ingrato pudessem torná-los mais do que eram. Como se aquela heterogênea coleção de defeitos pudesse, de alguma forma, acalmar a dor em meu coração.

As pessoas não são coisas, não exatamente, mas regras similares se aplicam. Uma vez que a novidade passa, o que resta? Estamos sempre a uma lasca, um arranhão, um defeito oculto ou óbvio de distância de sermos velhos ou gastos ou inúteis de alguma outra forma.

Lembro-me muito bem da noite em que Hagrid me levou de meu velho mundo para outro ao mesmo tempo estranho e rico em possibilidades. Em um único instante, me renovei. A cicatriz que me marcara como um ser esquisito por tanto tempo de repente era uma marca cobiçada, a marca de um ilustre pedigree. E, em cada rua por onde eu passava em Hogsmeade ou no Beco Diagonal, em cada loja onde entrava, as pessoas me conheciam como uma outra pessoa, alguém melhor do que eu jamais imaginara poder ser.

Nunca pensara que tal mágica fosse possível!

Mas você nunca se deixou enganar, Severus, nem uma só vez. "Sr. Potter. Nossa nova...celebridade", você disse no meu primeiro dia de aula, atingindo na veia o desajustado que se escondia sob a máscara da fama. Injusto, eu pensei, nunca pedi para ser famoso, só queria encontrar meu lugar. Mas não protestei. Você teria rido. E como tudo o que eu conhecera do mundo até então era injustiça, o que era mais uma, na verdade?

É claro, não demorou muito até a maior parte do glamour se desgastar, com a Parselíngua, Rita Skeeter, a morte de Cedric e o resto. Com o tempo, mais uma vez eu me tornei a pedrinha quebrada, o soldadinho de um só braço na caixa de charutos, esquecido e sozinho. Ainda assim, esperava que minha pátina pudesse ser renovada, como fora antes.

Não obstante, naquele ano, e nos seis que se seguiram, você tentou me convencer de que as lições que eu aprendera em meu armário se aplicavam perfeitamente às pessoas tanto quanto às coisas: que o novo sempre se torna velho. Que a perfeição é uma ilusão letal. Que as marcas e defeitos que possuímos, nossa desolação, nossa paixão e lealdade, nossa história crua, não revisada, é isso o que nos torna mais para as pessoas que amamos, que nos amam.

Eu o odiei por isso, Severus, e meu ódio me cegou. Levaria anos até que eu pudesse ver a beleza em sua crueldade e pudesse sentir prazer diante da sua maldade fina e elegante. E, embora eu nunca houvesse confundido as ilusões dos outros com a minha própria imagem, acreditava que, um dia, se me empenhasse, o ser que eu era e o que eles achavam que eu era poderiam se ajustar perfeitamente.

Quando terminei a escola, estava certo de que o deixaria para trás. Snape nunca mais, pensei; nunca mais o canalha seboso, nojento, odioso, graças a Deus. Saí para o mundo como um mago plenamente treinado, um herói de guerra, todas as minhas óbvias fendas remendadas, minhas manchas polidas, só com coisas boas à minha frente.

Voldemort estava morto mas havia muito trabalho a ser feito. Eu estava à deriva, o Ministério insistiu, então fui fazer o treinamento para ser Auror. Doze meses depois, me soltaram nas ruas para caçar os Comensais da Morte restantes.

Depois, por muitos anos, trabalhei muito - nenhum trabalho era perigoso demais para Potter e sua equipe! - e festejei ainda mais. Os tablóides ganharam muitos galeões às minhas custas. Jovens, velhas, bruxas ou Muggles, loiras, morenas ou ruivas, eu não ligava. Estava procurando por... algo, mas não sabia o que era.

Mas as mulheres sabiam exatamente o que queriam. E, apesar do corte de cabelos e das roupas da moda, apesar da Ordem of Merlin, do trabalho glamouroso, da lista de façanhas ditas heróicas, nunca levou muito tempo para Cheryl, Beth, Amy, Ann, ou qualquer uma delas descobrir que, por baixo daquilo tudo, eu era ainda o cara esquisito e magrelo de óculos quebrados e roupas de segunda mão que morava no armário embaixo da escada.

E aí elas me riscavam de sua lista e iam embora.

Todas as vezes eu dava de ombros, empinava o queixo e continuava procurando, mais por hábito, creio, do que por qualquer outra coisa. Então um dia, para o meu susto, eu descobri... Descobri você.

Uma batida saíra de controle: eles estavam em maior número, havia muitas armas Muggle, e oito estudantes haviam sido feitos reféns. Alguém precisava fazer o que precisava ser feito; decidi que esse alguém era eu.

Levei dois tiros, uma bordoada com um cano, me lançaram todos os tipos de feitiço e depois me jogaram de um molhe de cais. Em dezembro.

Mas os garotos se salvaram, sem ferimentos.

Então lá estava eu, deitado de costas em uma cama estreita de hospital, em um quarto abarrotado de flores, doces e estúpidos cartões musicais de "fique bom logo", na véspera de Natal. Estava completamente dopado, os olhos ainda úmidos de dor, e Sirius e Ron falavam sem parar, contando passo a passo a última batida para Remus, Hermione, Ginny e Colin.

De repente, a porta se abriu e você entrou no quarto, com a sua elegância habitual. Olhou ao redor com seu ar superior, lançou seu sorriso de escárnio a todos, e então mandou todos embora!

Até hoje não sei como você fez isso. O que você falou permanece nebuloso, embora eu ainda me lembre do seu tom grave, cortante, e da fúria gelada em seus olhos. O que quer que você tenha dito fez com que eles saíssem do quarto como cachorros com o rabo entre as pernas, exceto Ginny, que estava grávida de oito meses e saiu em passo de ganso.

Quando a porta se fechou e só nós ficamos no quarto, você pendurou o seu manto salpicado de neve sobre a cadeira, sentou-se à beira da cama e segurou minha mão. Eu podia sentir o cheiro de sua colônia. O contato foi eletrizante.

- Diga-me, Potter - você falou, com rispidez -, há quanto tempo você quer morrer?

Meu cérebro se congelou e meu coração começou a bater em ritmo irregular.

- Eu não quero morrer - balbuciei, lutando contra o feitiço que mantinha meu maxilar imóvel. - Eu só estou tentando...

Tentando o quê? Eu não sabia, esse é que era o problema. De repente, meu peito doeu e me senti exausto.

Então você viu além das mentiras, além da cicatriz, viu direto em minha alma e não foi embora.

- Você está tentando ser algo que não é - disse você, com aquela fúria aterrorizante que eu só vira em você durante as batalhas. - Pare de bancar o herói, Potter, e seja apenas você mesmo.

Algo se estilhaçou então, por baixo de minhas costelas quebradas. Talvez o meu orgulho.

- E se eu não for o bastante? - despejei, olhando para nossas mãos unidas. Via-as em meio à névoa, apesar do feitiço para corrigir minha visão.

Você agarrou meu queixo e ergueu meu rosto para fitar-me nos olhos; senti as lágrimas escorrerem.

- Harry - você disse, com suavidade -, você sempre será o bastante para as pessoas que importam em sua vida.

Inalei fundo e foi como respirar vidro quebrado. Então pisquei, minha visão se clareou e, de repente, a dor em meu peito foi suplantada por um calor incrível. De repente, eu vi... tudo. Vi seu rosto - firme, impaciente, sem pedir desculpas, exatamente como sua vida. Vi seus olhos se inflamarem, depois incinerarem vinte e sete anos de meus desejos incorrigíveis. Vi os cabelos negros e finos acariciarem seu rosto marcado, como asas de corvo contra a lua. Vi as nossas mãos unidas, uma mais pálida do que a outra, contra o azul celeste do cobertor. Vi a nós dois, anos à frente, lado a lado, remendados e gastos, com alguns pedaços faltando, colados aqui e ali com cola seca e rugosa.

- Como você sabe? - eu perguntei, embora àquela altura eu já começasse a suspeitar.

Você sorriu, talvez o primeiro sorriso genuíno seu que eu já vira; você passou a ponta dos dedos sobre a minha cicatriz e disse:

- Eu apenas sei.

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E esta é a razão, Severus. Como se você já não soubesse.

Foi por esta razão que deixei o Ministério naquele mesmo dia. Que me mudei de Londres para Hogsmeade. É por esta razão que todos os anos faço uma doação anônima para São Mungo. Que o beijei nos degraus de Gringotts no dia em que abrimos nossa conta conjunta, destroçando corações femininos em todo o país e fazendo com que o Profeta Diário batesse um recorde de circulação.

É por esta razão que eu o amo.

Será que Sirius entenderia se eu lhe contasse? O que você acha? Alguém entenderia?

Você ficou sozinho por mais tempo do que eu: será que mais alguém conseguiria ver o homem que eu vejo quando você pega minha mão e se vira para mim?

Será que mais alguém poderia tocar suas rugas, suas cicatrizes, e ver apenas o mapa de um amado território sempre em mudança, alternadamente familiar e misterioso? Será que poderiam passar os dedos pela poderosa magreza de suas costelas, sua barriga, suas coxas, como uma manada de antílopes correndo livres pelas planícies? Será que seus beijos poderiam aliviar o pálido esboço do crânio em sua testa, como a chuva sobre a terra sedenta?

Será que poderiam amar o assassino tanto quanto o homem, como você ama tanto o herói quanto o cara esquisito debaixo das escadas?

Será que poderiam?

Não.

Nosso amor não é cego, Severus, de modo algum. Mas talvez seja mais fácil se o resto do mundo acreditar que é.


Finis

Nota: Wabi-sabi é a beleza das coisas imperfeitas, transitórias e incompletas; é a beleza das coisas modestas e humildes; é a beleza das coisas não convencionais.



O original desta história, em inglês pode ser lido aqui.