O Duplo
"Você venceu, e eu me entrego. No entanto,
de agora em diante você também está morto - morto
para o Mundo, para o Paraíso e para a Esperança! Você
existia em mim - e, em minha morte, veja por esta imagem, que é
a sua própria, quão completamente você matou a si
mesmo."
Por que você faz de mim o que não sou? Por que precisa de mim para viver os seus sonhos e pesadelos? Por que me usa para superar, ou pensar que supera, seus próprios limites? Eu não sou o herói nem o covarde retratado por você. Não sou dominante nem submisso; não sou sádico, pervertido, misantropo, nem um Scrooge. Nunca vivi no suor fedorento de uma cama suja de porra, encharcada na depravação, fazendo sacanagem fodendo num antro de orgia bestial, e não sei citar Shakespeare de cor. Não sou o sapo que irá virar princípe quando beijado pelo parceiro ou parceira que você escolher. Não toco violoncelo nem viola da gamba. Não sou pederasta; não trepo com meus alunos. Também não fui estuprado na infância. Jamais pratiquei orgias com Lucius Malfoy ou com qualquer Comensal da Morte. Não chupo o pau de meus Mestres. Aliás, meus dois Mestres são bem menos autoritários do que você. Você me mantém sob Imperius vinte e quatro horas por dia. Você me faz desejar, sofrer, até amar. Com que direito se arroga esse poder sobre mim? Às vezes você me leva para a sua cama, e me usa como objeto de seus desejos. Pois bem. Eu vou lhe dizer uma verdade que, espero, irá lhe doer: aquele na sua cama, não sou eu. Tampouco sou eu aquele que sai de seu papel, ou que habita sua mente. Aquele é apenas uma imagem deformada de seus próprios sonhos pervertidos. Mas, ao dar vida a essa forma abominável, você, de alguma forma, me modifica. Nunca da forma que você quer, mas me modifica. O Corão proíbe a reprodução da figura humana. Não creio em nenhum deus, mas vejo mérito nesse preceito. Não é certo que se criem duplos impunemente. Deixe-me em paz. Minha vida já é bastante complicada sem você.
FIM |
Ptyx, Janeiro/ 2005
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